Medicamentos que vêm da Cannabis são alvo de pesquisa intensa

Com autorização judicial, muitas famílias usam extrato doméstico como tratamento

Publicada em 17/04/2020

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Por Maria Guimarães da Pesquisa FAPESP

Certas epilepsias não respondem aos medicamentos existentes, submetendo crianças e adultos a uma sucessão de episódios convulsivos que impedem o desenvolvimento e uma vida normais.

Paraesses casos, o uso de CBD (canabidiol) - substância produzida pela plantaCannabis sativa - está se tornando uma realidade cada vez mais disseminada nomundo.

Uma série de outras possibilidades de uso terapêutico desse composto e outros originados da maconha, os canabinoides, ainda são menos fundamentados e recebem crescente atenção de pesquisadores. É o caso de dor crônica de várias origens, ansiedade, estresse pós-traumático, autismo, Alzheimer, esquizofrenia, entre outros males para os quais as farmácias oferecem ajuda limitada

Resultadosde pesquisas internacionais, publicados em artigos científicos, corroboram autilidade do canabidiol como adjuvante em tratamentos de epilepsia, de acordocom revisão publicada em 2018 na revista Journal of Neurology, Neurosurgery& Psychiatry, pelo grupo da epidemiologista australiana Louisa Degenhardt,do Centro de Pesquisa Nacional em Drogas e Álcool, em Sydney.

Emoutra revisão, publicada em dezembro de 2019 na Lancet Psychiatry, ela alertapara a escassez de dados convincentes que justifiquem o uso disseminado decanabinoides para depressão, ansiedade, psicose e outros distúrbiospsiquiátricos. A meta-análise que seu grupo fez, no entanto, incluiu tantoestudos investigando o uso da planta inteira quanto de compostos isolados,chegando a uma predominância de THC enquanto princípio ativo. As conclusõesfrisam a necessidade de mais estudos.

Algunsdos estudos citados nas revisões foram feitos na USP, que marca forte presençanos trabalhos com canabidiol - os pesquisadores brasileiros não têm acesso aoTHC. De acordo com a plataforma Web of Science, a instituição paulista respondepor cerca de 7% da produção científica mundial, seguida por centros em Israel,no Reino Unido e nos Estados Unidos.

Aliderança se deve sobretudo à atividade dos grupos dos psiquiatras AntonioZuardi, José Alexandre Crippa e Jaime Hallak, e do médico farmacologistaFrancisco Silveira Guimarães, todos do campus de USP-RP (Ribeirão Preto daUniversidade de São Paulo).

Alémde ser um foco de pesquisa, a possibilidade de contribuir para uma série detratamentos tem tornado as menções na mídia mais e mais frequentes em anosrecentes. Em alguns países, como parte dos Estados Unidos, Uruguai e Canadá, amedida adotada foi liberar o uso medicinal da maconha - por vezes a própriaerva a ser fumada -, uma decisão controversa.

NoBrasil esse caminho não está no horizonte. O que se propõe é o uso docanabidiol, a substância canabinoide destacada por ter efeitos terapêuticos."Ações como a marcha da maconha têm um efeito pequeno", ponderaAntonio Zuardi. "A indústria percebeu que há um mercado, e essa pressão émuito mais forte."

Emmarço, entrou em vigor a resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária(Anvisa) aprovada em dezembro, que permitirá a fabricação no Brasil demedicamentos com predominância de canabidiol como princípio ativo, em duascategorias quanto ao teor deT HC (tetra-hidrocanabidiol) em sua composição (nomáximo 0,2%, e mais de 0,2%), e sua venda em farmácias.

Osprodutos com maior concentração de THC devem ser destinados apenas a pacientescom cuidados paliativos ou que sejam refratários a outras medicações ou doses.O THC é a substância responsável pelos efeitos psicotrópicos da maconha (quealteram a consciência) e, por isso, considerada mais perigosa.

Asautorizações continuarão a ser concedidas, como já acontece hoje, para usocompassivo - quando não há medicação eficaz. A denominação oficial"produtos à base de cannabis" significa que ainda não seriamconsiderados medicamentos, mas a mudança permitiria à indústria farmacêuticadisponibilizar novos produtos nas farmácias em caráter provisório.

Apenasno primeiro trimestre de 2019 o número de pedidos de autorização para aimportação de fármacos à base de cannabis ultrapassou 6 mil. Estima-se umcrescimento rápido desse mercado se houver produção nacional, embora oscompostos não sejam a solução para tudo e todos como as movimentaçõescomerciais podem fazer crer.

Apenasum medicamento é vendido no Brasil, curiosamente com um teor de THC equivalenteao de canabidiol. É o Mevatyl, autorizado pela Anvisa em 2017 para o controlede espasmos causados pela esclerose múltipla e produzido pela britânica GWPharmaceuticals, líder no mercado internacional. Embora tenha caído, o custo dotratamento ainda é alto e pode ficar por volta de R$ 1,5 mil por frasco de 30mililitros, que dura cerca de um mês conforme o caso. Com o nome de Sativex, omesmo medicamento está autorizado em 28 países, que não incluem os EstadosUnidos.

Zuardiestima que os primeiros fármacos brasileiros a chegarem ao mercado serãoanticonvulsivantes para uso conjugado com outros remédios em síndromesepiléticas resistentes à medicação. "Sendo otimista, ainda nesteano", prevê.

Rumoà clínica

Ogrupo de Ribeirão Preto está envolvido na linha de frente da pesquisa que podeconduzir ao desenvolvimento de um novo medicamento com canabidiol comoprincípio ativo e acaba de encerrar um ensaio clínico que envolveu 15 criançase adolescentes entre 2 e 18 anos, com uma diversidade de síndromes epiléticas.Os dados ainda estão em análise, mas Zuardi adianta: "Os resultados foramexcelentes". De acordo com o pesquisador, em 60% dos pacientes as crisescaíram pelo menos à metade, 40% dos quais ficaram livres de convulsões. Aredução nas crises foi menor nos outros 40% dos pacientes e uma dessas criançasficou sem nenhum benefício.

Nãoé suficiente, o psiquiatra admite. Foi um estudo aberto, no qual todos sabem otratamento que as crianças recebem. "O canabidiol tem muita fama, e só porsaberem que estão recebendo essa medicação as famílias já fazem todo otratamento com mais cuidado", conta. Resultados confiáveis vêm apenas como ensaio duplo-cego, em que nem as famílias nem os pesquisadores sabem quaispacientes são medicados e quais recebem uma substância inócua, o placebo."Esse estudo está em andamento e temos metade dos dados coletados, devemosterminar em meados do ano", prevê.

Antea dificuldade de obter o fármaco necessário em quantidade suficiente para ostestes, o grupo de Ribeirão Preto firmou convênio com o laboratóriofarmacêutico Prati-Donaduzzi, que tem interesse em desenvolver medicamentospara entrar nesse mercado. O teste concluído agora foi proposto em 2014, mesmoano em que o laboratório GW registrou um estudo com o mesmo intuito no siteclinicaltrials.gov - repositório internacional oficial para esses testes. Aempresa avançou nos testes e em 2018 lançou o Epidiolex, contra epilepsia, oprimeiro medicamento cujo princípio ativo é quase unicamente o canabidiolaprovado para venda nos Estados Unidos. O ensaio brasileiro começou apenas em2018, quando recebeu autorização da Anvisa: se der certo, o medicamento a serproduzido terá quase exclusivamente CBD como princípio ativo, mas dissolvido emveículos diferentes em relação ao similar britânico.

Viade mão dupla Os estudos brasileiros na área vêm de longa data. Em 1990Guimarães, que poucos anos antes terminara o doutorado sob orientação deZuardi, publicou um artigo na revista Psychopharmacology descrevendo osresultados do uso do labirinto em cruz elevado, um modelo de ansiedade, emratos. O experimento mostrava que o canabidiol era eficiente como ansiolíticopara esses animais, mas apenas em doses médias. Nas doses mais altas testadas,o efeito se perdia - o que explicaria resultados anteriores, de outros grupos,de que o composto não era adequado contra a ansiedade.

Comoparte da repercussão, em 1991 Guimarães recebeu uma carta datilografada dobioquímico búlgaro-israelense Raphael Mechoulam, da Universidade Hebraica deJerusalém, em Israel, o primeiro a elucidar as estruturas químicas do CBD e doTHC e por isso uma referência na área. Ele propunha que Guimarães testasse osefeitos de modificações na estrutura molecular do CBD.

Osresultados, publicados em 1994 na revista General Pharmacology, mostraram quealgumas das formas modificadas do CBD (batizadas com o prefixo HU, de HebrewUniversity) eram tão eficazes quanto o canabidiol natural nos ratos queexploravam o labirinto em cruz: moléculas artificialmente alteradas nem semprefuncionam bem. Os resultados, somados a outros que se seguiram, fortaleceram acolaboração entre o grupo de Mechoulam e o da USP-RP.

Umfruto mais recente é o desenvolvimento - e teste - de compostos modificados doCBD com a adição de flúor em diferentes posições da molécula. A maior potênciade um deles, quando comparado ao CBD natural, rendeu uma patente aos gruposisraelense e brasileiro, recentemente adquirida por uma empresanorte-americana, a Phytecs Pharm, com o intuito de desenvolver medicamentosdermatológicos.

Osgrupos de Zuardi e de Guimarães trabalham em estreita colaboração no âmbito doInstituto Nacional de Ciência e Tecnologia Translacional em Medicina (INCT-TM),coordenado por Jaime Hallak e José Alexandre Crippa. A medicina translacionalvisa usar experimentos feitos em animais para direcionar ensaios clínicos, e nooutro sentido voltar aos modelos animais para investigar a fundo os mecanismospor trás de observações feitas nos pacientes - formando uma via de mão dupla.

"Atransposição entre modelo e ser humano não é direta, mas fornece informaçõesimportantes para estudos clínicos, como os caminhos e a segurança dadroga", afirma Zuardi. "Se há um efeito consistente da droga sem danoaos animais, consideramos testar em seres humanos."

Combase no funcionamento do sistema endocanabinoide, ele é categórico sobre opotencial de saírem medicamentos importantes dessas pesquisas. O psiquiatraexplica que o cérebro tem mais receptores para canabinoides do que paraneurotransmissores reconhecidos como centrais em seu funcionamento.

Todasas regiões do sistema nervoso são repletas desses receptores, que cumprem umpapel modulatório. "Se existe um sistema tão importante, as drogas queinterferem nele podem tanto causar doenças como atenuá-las", diz Zuardi."O canabidiol é como uma Disneylândia para farmacologistas", brincaGuimarães. "Já foram descritos mais de 60 alvos em estudos in vitro, masainda não se sabe com certeza como a molécula atua nesses receptores." Naplanta Cannabis sativa, já se conhece mais de 100 canabinoides, embora aesmagadora maioria ainda seja obscura quanto a seus efeitos e ação nosreceptores animais