A luta pelo acesso à cannabis legal: afinal, quem pode prescrever extrato de cannabis no Brasil?

Relacionado a história da planta com as atuais legislações, Daiane Zappe revela qual profissional de saúde está ou não autorizado a prescrever cannabis no Brasil

Publicada em 23/02/2022

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Por Daiane Zappe

A cannabis é uma das substâncias psicoativas mais antigas, os primeiros vestígios foram no Oriente Médio. De lá se espalhou pelo mundo, primeiro pelo leste da Europa e depois até a África, de onde partiu para as Américas e, desde estes tempos remotos, é amplamente utilizada por toda a humanidade. 

Nossos antepassados utilizam as fibras do cânhamo para a fabricação têxtil há mais de 10.000 anos. Há evidências científicas do seu uso desde 1200 a.C., quando iniciou a domesticação da espécie cannabis sativa, e, desde o século XXVIII a.C., a China já utilizava como remédio para uma infinidade de patologias. Uma curiosidade é que no primeiro tratado de medicina feito pelo Imperador Shen Nung a cannabis estava registrada, e por regra de tal tratado, uma planta precisava ser observada por pelo menos 400 anos antes de seu registro.

Os ingleses, por sua vez, tomaram conhecimento da cannabis na Índia, onde transcrições descrevem que a rainha Victoria se beneficiou do tratamento para suas enxaquecas e cólicas menstruais. Seu médico particular, que lhe prescreveu cannabis, foi Sir J. Russell Reynolds, que escreveu em 1890: “quando pura e administrada com cuidado, [a cannabis] é um dos medicamentos mais valiosos que possuímos”. 

A Cannabis frequentou previamente os livros de medicina ocidentais, em pesquisas e artigos científicos seculares, especialmente na América. No Primeiro Manual Merck de Prática Médica (1899), aparecia a indicação de cannabis para doenças neurológicas, digestivas e dor.

Então, se a humanidade usufruía destas tantas propriedades terapêuticas, por que aconteceu a demonização e quais razões guiam nossos profissionais da saúde a simplesmente não estudarem e desenvolverem mais pesquisas em bancos universitários?

A resposta para estas perguntas é bastante complexa, envolve contexto histórico e cultural, mas podemos resumir, muito superficialmente, com uma única palavra: PRECONCEITO.

No Brasil, por volta de 1900, a cannabis era encontrada nas farmácias em forma de cigarros e xaropes, indicadas para tratamento de dor, tosse, asma, insônia entre outros. A utilização crescia entre as classes mais pobres e passava a competir com produtores de álcool e algodão, sendo considerado um dos motivos para ações mundiais visando sua proibição.

Em 1925, na Convenção de Genebra, com auxílio do depoimento do médico brasileiro Pernambuco Filho, que compara a maconha com os efeitos danosos do ópio, a planta passa a ser considerada uma droga perigosa.

O grande marco da proibição acontece em 1933, quando termina a lei seca americana, e o uso da cannabis, que antes competia somente com a indústria do algodão, passa a competir também com a indústria do álcool. Logo em seguida, é promulgada a lei de imposto sobre a marijuana, que tinha o objetivo de proibir o uso adulto e manter o uso medicinal; porém, na prática se tornava impossível a sua prescrição.

Com este cenário de proibições jurídicas em nível mundial e de uma associação da planta aos negros e latinos, paulatinamente, a maconha foi sendo percebida como uma substância deletéria e perigosa para a saúde do corpo, da mente e da sociedade. Entre outras expressões pejorativas que expressam essa compreensão, está aquela cunhada pelo médico Rodrigues Doria (1958), que considera a cannabis o “ópio dos pobres”. (Isto é ou não puro preconceito?)

Esta onda repressora e proibicionista, iniciada nos Estados Unidos em meados de 1930, infelizmente chegou ao Brasil, modificando nosso olhar sobre a planta e transformando o que antes era um mercado promissor, familiar, gerador de empregos, que arrecadava impostos e garantia qualidade de vida para a população, em um cenário onde o Brasil vive o fracasso da guerra às drogas, abrindo espaço para o mercado ilegal, o tráfico e o crime organizado, ocasionando milhares de mortes desnecessárias, assim como superlotando o sistema carcerário e culminando em um verdadeiro caos. 

Por muito tempo a cannabis foi mal vista pela grande maioria da sociedade, a “erva do diabo” sofreu (e ainda sofre) um grande preconceito, foi estigmatizada, foi verdadeiramente demonizada e excluída das pesquisas médicas. Proibida, na verdade, esta é a expressão correta.

No Brasil as coisas começaram a mudar a partir de 2014, quando um grupo de mães resolveu lutar para conseguir o tratamento de seus filhos, encontraram na cannabis a qualidade de vida que tanto buscavam. Estas mulheres foram as precursoras das mudanças que vivemos hoje em nossos debates médicos e políticos. Claro que o ativismo pela regulamentação da planta já existia, de nenhum modo podemos ignorar isto. Mas foi a luta, justa e dramática, destas mães, que abriram os olhos daqueles que estavam cobertos pela cegueira do preconceito e falta de conhecimento.

Tais mães desbravaram médicos prescritores, assim como procedimentos da ANVISA. Tais mães militaram diante dos nossos representantes no Congresso Nacional e conseguiram avançar, aos poucos na verdade, a mudança começou a acontecer. As observações clínicas comprovaram os relatos dessas mães, e hoje pesquisas científicas já corroboram o potencial terapêutico da cannabis para uma série de enfermidades. 

Com o aumento das pesquisas e evidências científicas sobre os benefícios da cannabis, novos profissionais da saúde têm demonstrado um grande interesse pela planta. Mas ainda temos algumas barreiras a serem enfrentadas, a começar pela difusão do conhecimento e capacitação destes profissionais para atender esta grande demanda da sociedade. Muitas pessoas procuram seus médicos para pedir uma prescrição e acompanhamento de uso de cannabis e são ignoradas, ou até mesmo convencidas a não utilizar e optar por um tratamento alopático tradicional (muitas vezes com efeitos colaterais severos).

Mesmo com tantos entraves, a quantidade de autorizações para importação de produtos à base de cannabis cresce exponencialmente. Conforme dados da Anvisa, foram 850 autorizações no ano de 2015 e 33.793 autorizações no ano de 2021, com estatísticas compiladas até 11 de novembro. O crescimento se deu, principalmente, a partir de 2019, com um total de 8.522 aprovações, e já em 2020 este  número mais que dobrou, chegando a 19.120, ou seja, a soma resulta em 68.775 permissões para um total de 56.085 pacientes.

Sim, o ideal seria a permissão do cultivo em solo brasileiro, mas com a negativa da Anvisa em 2019, seguimos num caminho que não democratiza tanto o acesso, e por muitas vezes acaba levando a judicialização de vários pedidos, seja para permitir o autocultivo ou para fornecimento do tratamento por parte do SUS ou planos de saúde, e para qualquer uma destas situações precisamos da prescrição médica.

Aliado a todos estes entraves, ainda temos o problema que o número de prescritores ainda é baixo. Segundo dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), entre 2015 e 2020, apenas 2.100 médicos prescreveram cannabis no Brasil. O número é inferior a 0,5% dos profissionais habilitados no país. A grande maioria não conhece, não estudou e sim, ainda há aquele grande problema, o velho preconceito! 

Dentre informações verdadeiras, preconceito e fake news, quem de fato pode prescrever o extrato de cannabis no Brasil?

Quando iniciou esta discussão sobre prescrição, em 2014, o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou que neurologistas, neurocirurgiões e psiquiatras prescrevessem o canabidiol, porém somente para crianças e adolescentes com epilepsia, que não tivessem respostas aos tratamentos convencionais, ou seja, somente uso compassivo em caso de epilepsia refratária e somente menores de 18 anos. Na época, o extrato de cannabis, rico em canabidiol, ainda estava na lista de substâncias proibidas no Brasil. 

Esta restrição de apenas 3 especialidades mudou em 2015, quando então, após uma grande pressão das mães (novamente elas, nosso orgulho), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) retirou o canabidiol da lista de substâncias proibidas e o classificou como substância sujeita a controle especial.

Legalmente pela Resolução RDC Nº 3/2015, o CBD e o próprio THC passaram a integrar o rol das substâncias sujeitas a controle especial, definidas pela Portaria Nº 344/1998, assim as prescrições de medicamentos sujeitos a controle especial podem ser realizadas apenas por profissionais médicos ou por cirurgiões dentistas, neste caso quando para uso odontológico.

Desta forma, a prescrição nos mais variados tratamentos pode ser feita por qualquer médico devidamente credenciado pelo Conselho Regional de Medicina (CRM), ou dentista, devidamente credenciados pelo Conselho Regional de Odontologia (CRO), sem que se exija uma especialidade específica.

Outros profissionais, como nutricionistas e fisioterapeutas podem prescrever? 

Por determinação da Anvisa ainda não.  Houve um parecer jurídico de uma empresa relatando esta possibilidade, mas não é algo que já se tenha jurisprudências neste sentido, para tanto precisaria discutir judicialmente o caso concreto, impetrar um Mandado de Segurança, e ainda assim seria uma decisão bastante difícil pois o extrato de cannabis não é (ainda) substância de livre prescrição. Mas é também uma luta válida, quanto maior o número de profissionais querendo atuar na área e prescrever, mais força ganhamos para seguir avançando nesta luta!

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e não correspondem, necessariamente, à posição do Sechat.

Sobre a autora:

Daiane Zappe é advogada, professora universitária especialista em Direito Constitucional na UFN e Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal). Entrou no universo da cannabis inicialmente como mãe de um paciente. Seu filho foi uma das primeiras crianças a obter autorização da Anvisa para importação ainda em 2014. Desde então, ela passou a auxiliar diversas mães de pacientes no processo de importação. Atua na indústria canábica desde 2015 e é completamente apaixonada pelo que faz.