"Brasil, potência agrícola em Cannabis?" Entrevista com agrônomo consultor de empresa que poderá cultivar

Engenheiro Lorenzo Rolim afirma que decisão abre um importante precedente e explica como será a produção da Terra Viva: processamento de fibras, sementes para alimentação e extração de compostos farmacêuticos

Publicada em 06/12/2019

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Nessa semana, uma importante notícia dividiu as atenções do setor de Cannabis com a regulamentação aprovada pela Anvisa. A empresa Schoenmaker Humako, do Grupo Terra Viva, foi autorizada pela Justiça a plantar e vender cânhamo, que é uma espécie de Cannabis com teor de THC abaixo de 0,3%. Para entender melhor o que isso significa, o portal Sechat conversou com o engenheiro agrônomo Lorenzo Rolim da Silva, responsável pelo parecer técnico que sustentou a ação vitoriosa na Justiça Federal do Distrito Federal.

"Desenvolvi um parecer demonstrando legalmente como funciona a regulamentação do cânhamo industrial no mundo, explicitando que a ONU nunca proibiu o cultivo de cânhamo industrial, mas que os países fizeram isso de forma equivocada. Porém, a maioria já possui leis de cultivo, como em muitos países da Europa, que têm desde a década de 60, e mais recentemente EUA e Canadá. Eu expliquei isso tudo no parecer, além das diferenças entre cânhamo e outras variedades de cannabis e como isso pode afetar economicamente o Brasil de forma positiva", explicou Lorenzo.

Conforme despacho do juiz Renato Coelho Borelli, da 9ª Vara Federal Cível da SJDF, a empresa “poderá ainda efetuar o comércio das sementes, folhas e fibras para fins exclusivamente industriais (inclusive na forma de insumos)”. A fiscalização deverá ser realizada pelo Ministério da Agricultura (Mapa) e pela Anvisa.

O engenheiro agrônomo confessa que não esperava que a decisão fosse favorável a empresa: "para minha surpresa, conseguiram a liminar que eu nem estava esperando, eu achava que não ia sair, porque a Anvisa fez um parecer contrário, e aparentemente o juiz optou mais pela nossa argumentação.

Confira a seguir a entrevista completa, em áudio e texto

Qual é a capacidade de produção da Terra Viva?

Eles têm uma área muito grande de produção de flores em estufas na cidade de Holambra, próximo a Campinas. São 10 hectares de estufa e 15 mil hectares de campo. É uma área muito conectada com o aeroporto de Holambra, então eles exportam para vários países. Essa é a capacidade, se vão adotar tudo isso para cultivar cânhamo é uma decisão deles, acho que não tem nem mercado para se cultivar tudo isso e vender. É uma empresa líder no mercado de flores. Então o sucesso dessa operação parece ser óbvio. Meu único medo é que o plantio vai ser baseado numa liminar. É perigoso, em termos jurídicos, se essa liminar cair em algum momento, eles estarão expostos. Não me parece o caso, mas existe essa chance.

É como acontece com a Abrace, da Paraíba?

Exatamente. A Abrace tem um Habeas Corpus preventivo. Se por acaso algum promotor de Justiça achar que tem algo errado e pedir para um juiz de segunda instância revisar o caso, a liminar pode cair, e aí teoricamente tudo que está lá é ilegal. É o que pode acontecer com a Terra Viva também. Eles podem ter as plantas no solo, e da noite para o dia algum juiz julgar que a liminar não tem validade. Eles podem ser enquadrados até como tráfico de drogas, embora não me parece que vá ser o caso. Mas se houver algum promotor justiceiro, vai saber!

Entenheiro Lorenzo Rolim da Silva
Essa produção de cânhamo vai ser focada em fibras, bioplástico, medicamento rico em CBD?

Eles estão focando em cânhamo industrial, basicamente em três opções: processamento de fibras, sementes como alimento e extração de compostos farmacêuticos, no caso o CBD. O foco vão ser os três. A gente adora falar que o cânhamo tem um milhão de usos, mas na hora de fazer, não é simples e necessita de uma capacidade de processamento muito grande.

Eu estava no Canadá até anteontem visitando produtores de cânhamo e processadores de fibras, e mesmo o Canadá que já tem uma capacidade industrial grande, ainda falta. Muitos produtores não têm para quem vender porque não tem como processar. E os próprios mercados para esses produtos não são muito desenvolvidos. Nunca houve uma produção de cânhamo em escala muito grande no mundo fora da China. Então tem um certo gap entre o que é produzido no mercado.

Acredito que a Terra Viva, num primeiro momento, vai produzir de maneira preliminar para entender o cultivo, porque não é tão simples implantar esse plantio em milhares de hectares, num primeiro momento. Acho que vão fazer alguns ensaios experimentais, testar a produção de fibras para ver produtividade, adubação, irrigação. Mesma coisa para semente e CBD. 

Eles têm um interesse grande em ser produtores de CBD, entrar nesse mercado de insumos farmacêuticos, o que no Brasil também volta essa questão do processamento: para quem você vai enviar isso para extrair esse CBD, hoje não existe. Eles dependem de realizar um investimento nessa área de extração.

Lorenzo durante seminário Hemp Summit, no Uruguai
Essa decisão abre precedente para que outras empresas consigam esse Direito e crie, mesmo que, digamos, no tapetão, uma cadeia produtiva de cânhamo no Brasil.

Absolutamente! Agora, digamos que o jogo está aberto. Essa decisão vai permitir que qualquer empresa agrícola e até não diretamente agrícola - embora acho que os entendimentos judiciais vão mais para o lado das empresas agrícolas - possam solicitar uma decisão similar.

Inclusive podem utilizar os mesmos argumentos que a Terra Viva utilizou e que foram aceitos pelo juiz, mesmo com a Anvisa e o Ministério da Agricultura indo contra. Ambos entraram como parte no processo, emitiram pareceres contrários, e nossos argumentos foram melhores que os deles.

A Anvisa e o Mapa se prendem em aspectos técnicos estúpidos, 'ah a planta não consta na lista ABCX 35 do parágrafo 49'. Isso não é motivo para se proibir, é apenas uma burocracia! Então são argumentos muito pobres.

Então, respondendo sua pergunta, sim abre um precedente muito grande e agora virou uma possibilidade de acessar o mercado. Acredito que muito mais gente tem interesse de fazer isso, basta seguir os mesmos passos que a Terra Viva seguiu e ir em busca da sua permissão.

Claro que gera um mercado com certo risco, você jamais gostaria de fazer um investimento grande baseado numa liminar que pode cair e mudar o cenário. Mas eles vão conseguir produzir e provar que não há nenhum risco, como muitas pessoas adoram falar.

Faltava coragem de uma empresa fazer esse processo, ir para cima do governo e pegar uma autorização de cultivo. A Terra Viva teve essa coragem, foi pra cima e conseguiu. Então, além de um precedente, um exemplo: não precisa esperar pelo governo para fazer uma coisa óbvia, pode ir pelos meios legais. O entendimento é global há anos de que o cânhamo não tem risco nenhum, qualquer país produz cânhamo a céu aberto sem nenhum tipo de proteção.

Eu mesmo já estive envolvido em vários processos em outros países, Austrália, Nova Zelândia, agora estou mais envolvido com o Canadá. Nesses países, é uma cultura como qualquer outra. Você compra as sementes numa loja em que também tem sementes de milho, soja, bota no campo, cultiva e colhe como qualquer outra coisa. É importante mostrar a realidade brasileira, porque somos uma potência agrícola campeã de produção na maioria de outras commodities, por que não mais essa?

Cânhamo é maconha? Maconha é cânhamo?

Sim! A espécie é exatamente a mesma, Cannabis sativa. Não há uma diferenciação. Muita gente adora dizer que tem Cannabis sativa e indica, mas o entendimento científico vigente hoje não é esse, mas que é uma espécie apenas e que tem diversos quimiotipos. E aí você divide as plantas nessas variedades.

Então é a mesma coisa, porém como essa diferenciação de quimiotipo, baseado nos metabólitos químicos que essas plantas produzem. Tem o quimiotipo que a gente chama de Cannabis medicinal, que produz teores de THC acima de 0,3% e tem quimiotipos que encaixam na categoria de cânhamo, porque produzem THC abaixo de 0,3% ou não produzem. Existem variedades sem nenhum teor de THC. É como você comparar maçã verde e maçã vermelha. É um exemplo bobo, mas tudo é maçã!