
700 vidas protegidas: quando a Justiça reconhece o valor das associações canábicas
TJRN concede salvo-conduto coletivo à Associação Reconstruir, em decisão histórica que reforça o papel social das entidades de pacientes e expõe os limites da futura regulamentação federal.
Publicado em 27/07/2025Uma decisão inédita do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte acaba de garantir o direito de cultivo e produção artesanal de cannabis medicinal para cerca de 700 pacientes e colaboradores da Associação Reconstruir, organização sem fins lucrativos que atua no estado desde 2018. O habeas corpus coletivo reconheceu a urgência e a legitimidade da atuação da associação, concedendo salvo-conduto preventivo para todo o seu corpo de associados e profissionais envolvidos na cadeia produtiva do óleo terapêutico.
Atuei como advogada nesse processo e, mesmo com toda a minha experiência no campo do direito canábico, preciso dizer: essa decisão mexe com a gente. Porque ela vai muito além de um caso jurídico. Ela representa o reconhecimento do valor social de um trabalho que nasce onde o Estado falha. E deixa evidente que a regulamentação em curso pode não ser suficiente para quem mais precisa.
Associações seguem à margem da regulamentação federal
Desde que o STJ determinou que Anvisa e União apresentassem um plano de regulamentação do cultivo de cânhamo medicinal até setembro de 2025, o setor aguarda com ansiedade a definição de regras claras. Mas um ponto não pode ser ignorado: a regulamentação exigida pelo STJ tem um recorte específico de para quem será permitido o cultivo e a produção no Brasil — no caso, para as empresas farmacêuticas.
Associações como a Reconstruir, que prestam serviço de utilidade pública à margem da indústria, podem não ser contempladas. E isso é grave. Porque são elas que garantem o acesso real a centenas (às vezes milhares) de pacientes que não têm como importar ou comprar produtos em farmácias autorizadas.
A importância da decisão do TJRN
Ao conceder o habeas corpus coletivo, o TJRN reconheceu que a Reconstruir atua com respaldo técnico, médico e científico, respeitando o princípio da dignidade humana e o direito fundamental à saúde. E foi além: ampliou a proteção não apenas ao corpo dirigente da associação, mas também a seus pacientes e colaboradores, permitindo que o trabalho continue sem o constante risco de criminalização.
Essa é uma vitória que pode – e deve – inspirar outros estados e tribunais. Porque judicializar o acesso à saúde é consequência direta da omissão legislativa e regulatória. Mas, enquanto o Congresso, a Anvisa e a União não avançam, a Justiça tem cumprido um papel essencial de reparação e proteção dos direitos fundamentais.
Cannabis acessível é justiça social
A maior parte dos pacientes atendidos pela Reconstruir vive em situação de vulnerabilidade. O óleo fornecido pela associação é produzido com responsabilidade técnica e distribuído a valores que chegam a ser 80% mais baixos do que os cobrados por produtos importados ou vendidos em farmácias.
Isso não é apenas um dado econômico, é um dado social. É sobre justiça. É sobre garantir vida digna para quem está fora do radar do mercado formal, mas não pode esperar que a política pública alcance sua porta.
Um convite à reflexão e à ação
A decisão do TJRN é motivo de comemoração, sim. Mas é também um alerta. Se a regulamentação federal seguir ignorando as associações, ela estará falhando com os que mais precisam. A história da cannabis medicinal no Brasil tem sido escrita à base de coragem, solidariedade e resistência — e as associações são prova disso.
Que esse texto seja não apenas um relato de vitória jurídica, mas um convite à reflexão e à construção coletiva de um modelo regulatório que contemple a todos. Porque ninguém pode ser deixado para trás.

Carla Coutinho é advogada e ativista com atuação destacada no direito canábico. CLO da Liamba Comitiva, com foco na área de Desenvolvimento e Pesquisa, e diretora da associação de pacientes Reconstruir Cannabis, é especialista em habeas corpus para cultivo medicinal e ações cíveis relacionadas ao acesso à cannabis terapêutica. Atua na defesa dos direitos fundamentais à saúde, à dignidade e à justiça social.