A urgência de rever a RDC 659/2022: entraves regulatórios à pesquisa científica com Cannabis no Brasil

A urgência de rever a RDC 659/2022: entraves regulatórios à pesquisa científica com Cannabis no Brasil

Apesar do avanço nas discussões sobre o uso medicinal e científico da Cannabis no Brasil, a RDC 659/2022 da Anvisa impõe barreiras que dificultam o progresso da pesquisa, especialmente em Instituições de Ciência e Tecnologia (ICTs) privadas

Publicado em 06/07/2025

O Brasil tem vivido uma contradição normativa que impacta diretamente o desenvolvimento científico e tecnológico no campo da Cannabis sativa L.


Apesar dos avanços no debate público e jurídico sobre o tema, ainda vivemos sob o peso de uma regulação tímida, restritiva e desatualizada, a RDC nº 659/2022 da Anvisa, publicada com a proposta de disciplinar a importação de produtos à base de Cannabis para fins científicos e medicinais, acabou por se tornar um obstáculo para o avanço da pesquisa, especialmente no que se refere às Instituições de Ciência e Tecnologia (ICTs) privadas.


A norma restringe sua aplicação às chamadas "instituições de ensino e pesquisa", sem reconhecer expressamente as ICTs como legítimas promotoras de estudos científicos, ainda que estejam registradas no CNPq, reconhecidas como sem fins lucrativos, e operem exclusivamente com objetivos científicos.


A exclusão não encontra respaldo constitucional, legal ou técnico - e resulta em um bloqueio burocrático que impede o florescimento de uma ciência aplicada, autônoma e voltada às necessidades sociais e ambientais do país.


É preciso lembrar que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 218, afirma que "o Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica". Mais ainda: o Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação (Lei nº 13.243/2016) reconhece expressamente, no artigo 2º, inciso IV, as Instituições de Ciência e Tecnologia (ICTs), públicas ou privadas, como protagonistas legítimas do sistema nacional de inovação.


Adicionalmente, a Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), em seu artigo 2º, autoriza de forma clara o cultivo e a manipulação de vegetais proscritos, como a Cannabis, para fins medicinais ou científicos, desde que previamente autorizados pelo poder público. Portanto, o que falta não é lei, mas regulamentação técnica sensível à pluralidade das instituições que produzem ciência no país.


O problema é que a RDC 659/2022 foi construída a partir de uma visão conservadora, que enxerga a pesquisa apenas no ambiente universitário formal, desconsiderando a existência de ICTs independentes, institutos de pesquisa credenciados e centros de tecnologia aplicada que, muitas vezes, possuem mais infraestrutura e rigor técnico do que faculdades privadas de pequeno porte.


No caso da Cannabis, essa limitação é particularmente grave. Como a RDC não prevê o cultivo nacional da planta nem mesmo para fins científicos, os pesquisadores são obrigados a importar extratos prontos do exterior, o que encarece os projetos, limita as amostras e gera dependência tecnológica de países que já regulamentaram o tema com base em ciência e soberania. Na prática, o Brasil se coloca à margem da inovação biomédica, agrícola e industrial associada à Cannabis, mesmo tendo clima,

 biodiversidade e capacidade técnica de sobra para liderar a pauta na América Latina.
No Instituto de Ciência e Tecnologia Cannabis Brasil (ICTCB), temos recebido pedidos constantes de parceria de universidades, laboratórios e startups interessadas em validar tecnologias derivadas do cânhamo e de outras variedades da planta. Entretanto, não podemos sequer iniciar protocolos experimentais com cultivo, ainda que este seja feito de forma controlada, com rastreabilidade, sem finalidade comercial, e exclusivamente voltado ao progresso científico.


A insegurança jurídica e a ausência de uma autorização especial para cultivo experimental inviabilizam o avanço de pesquisas urgentes, que vão desde estudos farmacêuticos até aplicações em biotecnologia ambiental.


É preciso reconhecer que a Anvisa perdeu a oportunidade de incluir as ICTs na RDC 659/2022, e com isso deixou de fomentar um ecossistema científico mais ágil, plural e eficaz, é  necessario rever a norma.


É desejavel estabelecer critérios técnicos objetivos que permitam o cultivo científico institucional, com controles sanitários, rastreabilidade e responsabilidade institucional, como já ocorre com outras substâncias sujeitas a controle especial.


O país precisa decidir: continuará importando conhecimento ou passará a produzi-lo? A ciência com Cannabis não pode depender de autorizações judiciais casuísticas, tampouco da interpretação subjetiva de servidores públicos que negam o que a lei já permite. A regulamentação sanitária deve servir à ciência - e não bloqueá-la.


A revisão da RDC 659/2022 é urgente, não apenas para corrigir uma omissão técnica, mas para alinhar o Brasil aos valores constitucionais da dignidade humana, da saúde e da liberdade científica. Estamos diante de uma planta com potencial terapêutico, agrícola e industrial inquestionável. Cabe à Anvisa e aos órgãos reguladores criar as condições para que esse potencial seja estudado com rigor, ética e independência, e não continuar impondo barreiras para quem busca conhecimento.


A ciência brasileira não pode ser tratada como risco sanitário. Ela é, na verdade, a melhor ferramenta de proteção à vida e de construção de um futuro mais justo, sustentável e soberano.
 

Imagem do colunista Fabricio Ebone Zardo
Fabricio Ebone Zardo

Fabricio Ebone Zardo* é advogado especialista em direito canábico, vice-presidente e diretor jurídico do Instituto de Ciência e Tecnologia Cannabis Brasil.