
Antes tarde do que sem efeito
Confira a coluna de Tarso Araújo, que traz detalhes sobre o novo adiamento da regulamentação do cultivo de Cannabis no Brasil, os bastidores da inércia do governo e por que esse atraso pode, na verdade, ser uma boa notícia
Publicado em 05/10/2025As expectativas não eram as melhores. Desde outubro de 2024, o mercado brasileiro de Cannabis vive em compasso de espera pela primeira regulamentação de cultivo da planta no Brasil desde a proclamação da República. O prazo mais recente para que a União desse esse passo histórico era o dia 30 de setembro. Ninguém tinha muita esperança de o governo apresentar um decreto regulatório robusto, contemplando todas as possibilidades levantadas no plano de ação apresentado ao STJ em maio. Acabou que o governo não apresentou nada, a não ser um novo pedido de prazo. E isso pode ser uma boa notícia.
Porque a verdade é que o governo não fez praticamente nada desde que o STJ lhe deu um prazo extra para regulamentar a matéria. Dos nove itens previstos no cronograma, a AGU diz que cumpriu apenas 5, sendo que um deles era apresentar o próprio pedido de extensão de prazo. Outros dois compreendiam realizar “agendas bilaterais” entre os entes governamentais envolvidos, “consulta diretiva com experts e sessões públicas de diálogo”. Se essas etapas chegaram a ser realizadas, foram feitas de modo opaco e não produziram qualquer documento, como era de se esperar. Afinal, apenas duas das nove etapas previstas no plano foram executadas – uma portaria e uma nota técnica que dependiam exclusivamente do MAPA. É muito pouco.
Tarso Araujo confirmado no Cannabis Connection 2025
Jornalista, documentarista e consultor, especialista em saúde e políticas de drogas, Tarso Araújo está entre os debatedores confirmados no Cannabis Connection 2025, que ocorre no dia 6 de novembro.
Além dele, o evento contará com os seguintes especialistas já anunciados:
Beatriz Emygdio – pesquisadora da Embrapa e presidente do Comitê Permanente de Assessoramento Estratégico em Cannabis
Filipe Campos – líder de Market Insights na Close-Up International, especialista em dados e tendências do mercado farmacêutico
João Paulo Perfeito – Gerente Medicamentos Específicos e Fitoterápicos da Anvisa, farmacêutico clínico e industrial, mestre em Ciências da Saúde, com experiência em regulação, formulação e uso terapêutico da cannabis
Garanta sua participação
Além disso, o único outro documento feito até o momento foi uma minuta de alteração da portaria 344/1998, que atualiza as listas de substâncias e plantas sujeitas a controle especial pela Lei de Drogas (11.343/2006) e é o primeiríssimo regulamento que precisa mudar para que a regulamentação tome forma.
Na minuta proposta para atualizar a portaria, a Anvisa autoriza o cultivo apenas para a indústria farmacêutica, com o limite de 0,3% de THC. Ignoram-se as associações de pacientes, não se fala em pesquisa, não se permite o cultivo de cânhamo para alimentos e fibras. Apenas fica assegurado o monopólio do setor farmacêutico. Para ficar com essa minuta como “a regulamentação”, melhor ficar sem nada mesmo e pedir mais prazo.
Essa minuta não atende nem mesmo o interesse da indústria farmacêutica, já que a nacionalização dos cultivos depende de grandes investimentos e o setor já percebeu que, dentro dos limites de 0,3% de THC, existe um grande risco de o cultivo não ser economicamente viável. Para o fabricante de medicamentos ou produtos de Cannabis, vai ser mais seguro ficar na sua importando insumo para envasar, como já se faz com 95% dos medicamentos vendidos no Brasil. Ou seja, se a regulamentação seguir o que a Anvisa propôs até o momento, ela pode se tornar algo totalmente sem efeito, que não interessa nem mesmo ao setor para quem ela foi feita com tanto carinho.
Na verdade, como está, a minuta de alteração da portaria 344/1998, pode ser ainda pior, em vez sem efeito. Porque está claro que essa minuta tem potencial para ensejar uma nova leva de judicializações. De produtores agrícolas que querem plantar para produzir alimentos e fibras, de produtores que não querem perder sua colheita porque sua safra passou dos 0,3% de THC permitidos com a passagem do El Niño, de farmacêuticos que querem voluntariamente passar desse limite para tornar seus cultivos economicamente viáveis para a produção de medicamentos.
Por tudo isso, é melhor esperar mesmo. Antes tarde do que sem efeito, ou para poucos. Afinal, estamos esperando desde 2006, quando a Lei de Drogas criou o poder/dever de a União regulamentar o cultivo de Cannabis e outras plantas proibidas para fins medicinais e científicos.
Vamos ver se, dessa vez, o STJ vai fazer como da outra e simplesmente dar mais tempo à ré, sem fiscalizar o cumprimento das etapas intermediárias, como fez desde maio. A julgar por tudo que União fez (ou deixou de fazer) para cumprir a sentença no últimos 12 meses, talvez seja necessário manter a rédea curta.
E vamos torcer para que essa nova diretoria da Anvisa abrace essa causa sem medo da complexidade. E sem a morosidade com que tem tratado a pauta da Cannabis. Não custa lembrar, que a RDC 327 era para ter sido revisada em 2022. E cá estamos em 2025, sem sinal de uma nova versão da normativa.

Tarso Araujo é jornalista, colunista do portal Sechat, documentarista e consultor de negócios de cannabis e psicodélicos. É codiretor de “Ilegal – a Vida Não Espera”, documentário que trouxe o debate sobre cannabis medicinal para a imprensa brasileira, e autor dos livros “Almanaque das Drogas - um Guia Informal para o Debate Racional”, (Leya, 2012) e “Guia sobre Drogas para Jornalistas” (Catalize, 2017). Atualmente, é consultor do Instituto Ficus, ONG de advocacy sobre Cannabis e psicodélicos, e sócio da Navega, clínica de cetamina para depressão refratária, além de diretor da Catalize Lab, produtora de comunicação e impacto social.