
Canabinoides Semissintéticos: novas perspectivas para a regulamentação do cânhamo industrial no Brasil
Pesquisadora da Embrapa e Presidente do Comitê Permanente de Assessoramento Estratégico no tema da cannabis
Publicado em 20/07/2025Os canabinoides semissintéticos representam uma fronteira emergente no universo dos compostos derivados da cannabis. O aumento na disponibilidade e diversidade destes produtos tem despertado preocupações crescentes relacionadas à saúde pública, desafios regulatórios e dificuldades na fiscalização em diversos países.
O Que São Canabinoides Semissintéticos?
Canabinoides semissintéticos, também chamados de derivados intoxicantes do cânhamo, são formas quimicamente modificadas de canabinoides encontrados na planta de cannabis, desenvolvidas especificamente para imitar, potencializar ou alterar os efeitos psicoativos de compostos como o Delta-9-THC (tetrahidrocanabinol). Eles são criados através da alteração da estrutura molecular dos canabinoides naturalmente extraídos, como o CBD (canabidiol), por meio de reações químicas específicas.
Diferentemente dos canabinoides totalmente sintéticos, que são criados inteiramente em laboratório sem usar componentes da planta, os semissintéticos mantêm parte da estrutura original do canabinoide natural. Essa distinção é importante porque influencia as propriedades farmacológicas, o status legal e as implicações para a saúde.
O mercado de canabinoides semissintéticos tem se expandido rapidamente, com diversos compostos ganhando popularidade. Estes produtos são frequentemente comercializados como alternativas legais à cannabis tradicional, aproveitando-se de lacunas regulatórias em diversos países, particularmente em jurisdições onde o marco legal permite indiscriminadamente qualquer derivado do cânhamo.
Principais Canabinoides Semissintéticos e o Canabidiol (CBD) Como Precursor
Delta-8-THC e Delta-10-THC
Delta-8-THC e Delta-10-THC são isômeros do Delta-9-THC, o principal componente psicoativo da cannabis e, estão presentes em pequenas quantidades nas plantas de cannabis de forma natural. Ambos são considerados menos potentes que o Denta-9-THC e geralmente são sintetizados a partir de canabidiol (CBD), através de um processo de isomerização. Este processo envolve a aplicação de ácidos fortes, como ácido clorídrico ou sulfúrico, ao destilado de CBD extraído das flores de cânhamo, convertendo o CBD em delta-8-THC e ou delta-10-THC.
Hexahidrocanabinol (HHC) e Derivados (Acetato de hexahidrocanabinol (HHC-O) e Hexahidrocanabiforol (HHC-P))
Embora presente naturalmente na cannabis em traços mínimos, o Hexahidrocanabinol (HHC) disponível comercialmente é predominantemente obtido por via semissintética. O principal método de produção envolve a hidrogenação catalítica de isômeros de THC (Delta 8, Delta 9 e Delta 10), derivados por sua vez da conversão do CBD.
O hexahidrocanabinol (HHC) surgiu como uma alternativa psicoativa ao THC, sendo comercializado como uma opção mais suave e estável, muitas vezes sob a denominação de "cannabis light". No entanto, seu desenvolvimento evoluiu significativamente com a criação de derivados mais potentes. Através de acetilação, obtém-se o HHC-O (acetato de HHC), uma versão com maior estabilidade molecular e efeitos intoxicantes amplificados. Ainda mais impactante é o HHC-P (hexahidrocanabiforol), resultante da adição de uma cadeia carbônica à estrutura do HHC - um canabinoide estimado como 30 vezes mais potente que seu precursor acetilado, rivalizando com os análogos sintéticos mais fortes disponíveis no mercado.
Essa progressão química demonstra como modificações estruturais relativamente simples podem gerar substâncias com perfis de atividade dramaticamente diferentes.
Tetrahidrocanabiforol (THC-P) e Tetrahidrocanabidiol (H4-CBD)
Isolado pela primeira vez em 2019, por cientistas italianos, e presente em mínimas quantidades, o tetrahidrocanabiforol (THC-P) apresenta semelhanças estruturais ao delta-9-THC, com potencial entorpecente muito superior e maior afinidade (até 33 x mais) aos receptores CB1. Sintetizado a partir do CBD, em processos semelhantes aos usados para produzir delta-8-THC, vem ganhando popularidade e tem sido encontrado em diversos produtos comerciais.
O tetrahidrocanabidiol (H4-CBD), também chamado de CBD hidrogenado, é um composto semissintético, produzido a partir do CBD e embora tenha surgido no mercado recentemente, está longe de ser uma novidade, pois foi sintetizado pela primeira vez em 1940. Poucos são os estudos disponíveis, mas sabe-se que o H4-CBD ativa ambos os receptores CB1 e CB2, potencializando os efeitos do CBD.
A explosão dos semissintéticos pelo mundo
A produção de canabinoides semissintéticos foi viabilizada pela abundância de CBD derivado do cânhamo no mercado, cuja disponibilidade reduziu os custos da matéria-prima e impulsionou o desenvolvimento de produtos com maior valor agregado. Um exemplo que merece destaque é o mercado de Delta-8 THC, que foi introduzido em 2019, e em 2023 já representava 44% do mercado norte-americano de canabinoides semissintéticos derivados do cânhamo, com vendas atingindo US$ 1,2 bilhão no mesmo ano.
Segundo o UNODC (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME), das 40 variedades de canabinoides sintéticos identificadas em material apreendido entre 2022 e 2024, quase metade (18 substâncias) pertence à nova classe de canabinoides semissintéticos. O hexahidrocanabinol (HHC) emergiu como a substância mais disseminada, detectada em 34 países e territórios, seguido pelo HHC-P (17 países) e H4-CBD (15 países).
Paralelamente, um estudo californiano revelou dados alarmantes: em 104 produtos derivados de cânhamo (de 68 marcas diferentes), 95% continham canabinoides sintéticos proibidos, incluindo amostras com concentrações de THC 32 vezes superior ao limite legal. Particularmente preocupante foi a detecção de THC-P - um canabinoide semissintético com potência 30 vezes maior que o THC natural - em quase metade dos produtos analisados.
Além da crescente diversificação de produtos e do aumento de seu potencial psicoativo, observa-se também uma ampliação nas formas de apresentação e comercialização desses itens. Um exemplo marcante é a prática de borrifar canabinoides semissintéticos em flores naturais de cannabis, técnica que busca intensificar os efeitos sob a aparência de um produto 'natural'.
Um crescente número de países vem reportando incidentes toxicológicos associados ao uso de canabinoides sintéticos e semissintéticos, situação agravada pela ausência de rotulagem adequada e informações precisas sobre esses produtos. Essa realidade não apenas expõe os consumidores a riscos graves, como também prejudica a credibilidade do mercado regulado, que acaba sendo injustamente associado a esses problemas.
Países que Já Regulamentaram Canabinóides Semissintéticos
Diante do aumento expressivo de preocupações relacionadas à segurança e saúde pública, diversos países têm adotado medidas regulatórias específicas para canabinoides semissintéticos. Essa onda de regulações emergentes representa uma resposta coordenada aos desafios complexos que essas substâncias vêm impondo aos sistemas de vigilância sanitária e às políticas de drogas em âmbito global.
Japão
O Japão implementou uma série de controles específicos sobre vários canabinoides, incluindo THC-P e HHC em março de 2022, e expandiu os controles nos anos subsequentes para incluir delta-8-THC-O e HHC-O, entre outros.
Suíça
A Suíça controlou o HHC em março de 2023 e o HHC-P, delta-8-THC, THC-P e H4-CBD em outubro de 2023, além de introduzir um controle genérico e designar o olivetol como um precursor químico.
Dinamarca
A Dinamarca controlou o HHC em maio de 2023, seguido pelo H4-CBD, HHC-P e todos os sete isômeros do THC-P em janeiro de 2024. Em setembro de 2024, introduziram um controle genérico cobrindo quaisquer derivados de THC e HHC ainda não listados especificamente.
França
A França regulamentou o HHC, o HHC-O e o HHC-P em junho de 2023. Em junho de 2024, controlaram o H2-CBD (dihidrocanabidiol) e o H4-CBD (tetrahidrocanabidiol), além de introduzir um amplo controle genérico nas variantes de THC e HHC.
Itália
Em julho de 2023, a Itália controlou HHC, HHC-O e HHC-P, seguido pela regulamentação de HHCH e THC-P em março de 2024.
Suécia
A Suécia controlou HHC, HHC-P, HHC-O, delta-8-THC e THC-P em julho de 2023, junto com os acetatos de delta-8 e delta-9-THC.
Alemanha
A Alemanha introduziu um controle genérico extremamente amplo sobre as variantes de THC e HHC, abrangendo uma vasta gama de canabinóides semissintéticos sob uma única estrutura regulatória.
Canadá
A Health Canada emitiu uma orientação afirmando que os produtos que contêm "canabinóides intoxicantes diferentes de delta-9-THC" estão sujeitos aos mesmos requisitos legais que aqueles que contêm delta-9-THC. Isso inclui limites nas quantidades totais de materiais ativos por unidade.
República Tcheca
Em março de 2024, a República Tcheca controlou o HHC, o HHC-O e o THC-P. Em junho de 2024, expandiram esse controle para incluir THC-B, THC-H, THC-C8, HHC-P, HHC-H, HHC-B e HHC-C8.
Malta
Em setembro de 2024, Malta anunciou a proibição da venda de produtos contendo HHC devido a preocupações com seu apelo às crianças, particularmente na forma de comestíveis coloridos.
Considerações para a regulamentação do cultivo do cânhamo industrial no Brasil
O mercado global de derivados canábicos - sejam sintéticos, semissintéticos, lícitos ou ilícitos - demonstra claramente a capacidade constante de inovação para contornar regulamentações, com novos produtos e formulações surgindo continuamente. Dentre as experiências internacionais – o exemplo dos EUA após o Farm Bill de 2018 – destaca a necessidade crítica de definições precisas sobre os derivados do cânhamo industrial.
A ambiguidade legal nos EUA permitiu que derivados semissintéticos intoxicantes ganhassem status legal, criando desafios para saúde pública e regulação. No entanto, além desses compostos, é essencial considerar toda a cadeia de derivados, pois existem os derivados naturais diretos (flores, folhas, sementes, caules e raízes); os derivados secundários (biomassa pós-extração, subprodutos de destilação) e os derivados industriais (biomateriais, fibras, biocombustíveis).
Uma regulamentação eficaz deve estabelecer critérios objetivos para classificação (origem, processamento e potencial intoxicante), diferenciando normas para uso comercial e científico - garantindo tanto controle de qualidade e segurança aos consumidores quanto espaço para pesquisa e inovação industrial.
Por outro lado, é crucial reconhecer que esses canabinoides semissintéticos também apresentam promissoras aplicações medicinais ainda inexploradas. As modificações químicas em sua estrutura podem conferir não apenas maior potência, mas também maior estabilidade molecular e seletividade por receptores específicos - características valiosas para fins terapêuticos. Embora essas pesquisas estejam em fase inicial, seu desenvolvimento deve ser incentivado.
A evolução do cenário exige uma reavaliação dos mecanismos de controle, com foco prioritário nos produtos finais comercializados, já que a fiscalização restrita ao cultivo mostra-se ineficaz ante a complexidade dos novos derivados. A obsessão regulatória com limites de THC (como os 0,3% no Brasil) perdeu relevância prática com o surgimento de canabinoides semissintéticos - muitos sintetizados a partir do CBD, mas com efeitos psicoativos até 30 vezes mais potentes que o THC natural.
Durante minha recente participação no CannMed 25 - evento global com representantes de 12 países, no painel sobre canabinoides semissintéticos, destacou-se o consenso científico sobre a necessidade de regulamentar a cannabis como espécie única, rejeitando a divisão artificial entre "cânhamo" e "maconha".
Essa dicotomia ultrapassada, baseada apenas no teor de THC, mostrou-se não apenas cientificamente inconsistente, mas também contraproducente do ponto de vista de saúde pública.
A abordagem mais sensata seria regular e controlar a produção de todos os canabinoides naturais, garantindo aos consumidores acesso a produtos seguros, padronizados e devidamente fiscalizados. Essa estratégia se mostra infinitamente preferível à situação atual, que acaba por empurrar os usuários para os riscos do mercado ilegal - repleto de produtos sintéticos não regulamentados, sem qualquer controle de qualidade ou monitoramento.

Pesquisadora da Embrapa e presidente do Comitê Permanente de Assessoramento Estratégico em Cannabis Beatriz Marti Emygdio possui formação em Ciências Biológicas, mestrado em Melhoramento Genético de Plantas e doutorado em Ciência e Tecnologia de Sementes. É pesquisadora da Embrapa desde 2001. Atua na área de recursos genéticos e melhoramento de culturas anuais. Uma das pioneiras na defesa da cannabis no Brasil, participou da definicao de linhas de pesquisa e estruturação do Programa de Pesquisa com Cannabis da Embrapa. Atualmente, como Presidente do Comitê Permanente de Cannabis (CPCAN), assessora a Diretoria-Executiva da Embrapa em todas as iniciativas relacionadas ao tema. Atua na estruturação de redes e projetos de pesquisa com cannabis, na análise e proposição de marcos regulatórios para o cultivo de cannabis no Brasil e na definição de estratégias e políticas públicas para subsidiar o estabelecimento de cadeias produtivas nacionais, inclusivas e sustentáveis.