Da marginalização à legalização
Lições que as Bets antecipam sobre o futuro da cannabis
Publicado em 03/11/2024Nas últimas semanas, vimos diversos escândalos envolvendo as Bets no Brasil, incluindo a apuração pela Confederação Nacional do Comércio (CNC) de que mais de R$ 68 bilhões foram gastos em plataformas de apostas de junho de 2023 a junho de 2024. Além disso, surgiram denúncias alarmantes de que R$ 3 bilhões de recursos do Bolsa Família foram gastos em apostas online, somente em agosto de 2024, revelando a falta de controle sobre esses recursos e o impacto devastador para famílias vulneráveis.
Esses dados destacam os perigos de uma regulamentação frouxa, que não protege os mais expostos e permite a exploração comercial descontrolada. E agora, com a legalização da Cannabis em pauta, o que podemos aprender com esses erros para garantir que a planta siga um caminho mais responsável e equilibrado?
Lembra quando as apostas no Brasil se limitavam a uma “fezinha” na loteria? O jogo do bicho, ilegal, mas profundamente enraizado, também fazia parte do imaginário popular. Entretanto, as apostas esportivas, especialmente aquelas online, eram uma realidade distante, vistas mais em filmes americanos com apostadores frenéticos em corridas de cavalos ou lutas de boxe. O Brasil, até poucos anos atrás, mantinha esse tipo de atividade sob um obscurantismo à margem da lei.
Este cenário começou a mudar com a Lei Federal 13.756, promulgada em 2018 pelo então presidente Michel Temer, que abriu caminho para as famosas "Bets". E assim, antes que pudéssemos perceber, as bancas de apostas online tomaram conta de espaços inimagináveis. Em pouco tempo, vimos celebridades e influenciadores digitais promovendo essas plataformas, estampando suas marcas em camisas de times de futebol e até nos comerciais de horário nobre.
Por outro lado, o que se apresentou para a grande massa como liberalismo econômico e um movimento promissor, logo revelou seu lado sombrio: dependência psíquica, lavagem de dinheiro, falta de arrecadação tributária e uma profunda omissão na proteção dos mais vulneráveis.
Assim como as apostas, a Cannabis passou décadas marginalizada e estigmatizada, associada ao apelo de pequenos grupos populares por sua regulação. Hoje, estamos testemunhando a descriminalização parcial da maconha, acompanhada de seu crescente uso medicinal. Mas qual será o caminho que a legalização completa tomará? O que podemos aprender com os erros cometidos na regulamentação das apostas? Corremos o risco de deixar a Cannabis seguir o mesmo caminho de exploração econômica desenfreada, ignorando as consequências sociais e de saúde pública?
Ao contrário das Bets, que tiveram seu funcionamento legalizado pela Lei 13.756/2018, liberando o caminho para os interesses econômicos empresariais, a Cannabis teve sua permissão primeiramente por vias judiciais, quando famílias apenas queriam o direito de usar a planta de forma medicinal.
Logo, um pequeno movimento em prol da Cannabis começou a surgir por meio de associações de pacientes, seguido pela adesão das indústrias farmacêuticas, o que motivou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a iniciar um processo regulatório de acesso aos medicamentos à base de Cannabis.
Contudo, a Anvisa não é capaz de regulamentar todo o setor da Cannabis sozinha, uma vez que este tema vai além das questões de saúde, abrangendo áreas de natureza penal, agrícola e econômica.
De fato, o que observamos nos últimos anos é um grande cabo de guerra quando falamos sobre a maconha, onde cada interessado puxa a corda para si. Por exemplo, logo após a recente descriminalização do porte de até 40g de maconha pelo STF, vimos um movimento no Congresso Nacional para tentar emendar a constituição e criminalizar usuários de drogas em geral.
E é este mesmo congresso, que de maneira conservadora fecha os olhos para as Bets, vem permitindo que operações bilionárias causem prejuízos aos cofres públicos e escoem grandes quantias para paraísos fiscais, sem arrecadar um real sequer ao Brasil, como é o caso por exemplo da PIXBET, empresa sediada na ilha Caribenha de Curaçao, sendo hoje o principal patrocinador do Flamengo.
De forma similar, a atual legislação sobre os medicamentos à base de Cannabis permite que grandes quantias financeiras também sejam enviadas a outros países, visto que a importação de medicamentos de até U$$ 10.000,00 segue sem tributação por conta da imunidade tributária de medicamentos. Dessa forma, com base no levantamento feito pela KayaMind, empresa especializada em dados sobre o mercado de Cannabis, foram registrados mais de 230 mil pacientes no ano de 2024 que estavam aptos a adquirem medicamentos à base de Cannabis de forma importada, com preços de até R$ 2.089,00 (dois mil e oitenta e nove reais), deixando automaticamente de serem arrecadados milhões de reais nessas compras, que poderiam ser revertidas aos cofres públicos.
Essa omissão fiscal e tributária gera inicialmente impactos negativos na arrecadação do Brasil, mas, em segundo plano, deixa de criar um ecossistema econômico em que seja possível a geração de empregos e a injeção de capital externo no Brasil. Contudo, além dos impactos econômicos, a publicidade desenfreada é outro aspecto que precisa de uma abordagem crítica na regulamentação de mercados emergentes.
No caso das apostas esportivas, a exposição excessiva, inclusive em canais de TV e nas redes sociais, tem exacerbado um problema que deveria ser contido: o vício em apostas, também chamado de ludopatia. O aumento de demandas de saúde relacionadas a ludopatia vem sido observada, inclusive, dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) por meio dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
Sobre este ponto, em reunião ministerial ocorrida no início de outubro, a Ministra da Saúde, Nísia Trindade, reconheceu que as consequências do vício em jogos são um grave problema de saúde pública no Brasil e no mundo, e que irá reforçar ações nas Equipes de Saúde da Família na assistência a pessoas com vício em apostas, especialmente junto à Atenção Primária.
Com relação à Cannabis medicinal, apesar de sua regulamentação estar avançando, é essencial que o discurso que a cerca seja equilibrado e coerente, visto que comumente a planta tem sido tratada quase como uma panaceia, com promessas de cura para uma ampla gama de doenças e para quaisquer pacientes.
Embora existam benefícios comprovados no uso medicinal da Cannabis, como em casos de epilepsia refratária e controle de náusea induzida por quimioterapia, é fundamental que a publicidade de seus produtos não siga o mesmo caminho abusivo das apostas. A Cannabis não deve ser promovida como uma cura milagrosa sem que suas limitações de eficácia e riscos potenciais sejam claramente explicados.
Por outro lado, a liberação do uso adulto da Cannabis no Brasil pode estar mais próxima do que muitos imaginam. Mesmo com os debates ainda em andamento, os benefícios sociais e econômicos que já são visíveis em países que já experimentaram os efeitos da legalização — como o aumento de arrecadação tributária e a redução de crimes relacionados ao tráfico — é crucial que essa liberação siga critérios mínimos de comercialização e publicidade.
Assim como o tabaco e o álcool, a Cannabis deve ser regulamentada com restrições claras, para garantir a proteção dos mais vulneráveis, como jovens e pessoas com predisposição ao abuso. Campanhas de conscientização, limitação de acesso e controle sobre a publicidade serão fundamentais para que essa transição ocorra de forma segura e responsável, sem abrir espaço para a exploração comercial desenfreada ou efeitos negativos à saúde pública.
REFERÊNCIAS:
https://www.jota.info/artigos/cannabis-e-jogo-unidos-pelos-problemas-de-desarticulacao
https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2024/10/02/bets-anuncios-brasil-maconha.htm
https://iclnoticias.com.br/jogo-do-tigrinho-e-maconha-laranja-com-banana/
Advogado pós graduado em direito médico, presidente da Comissão de Direito da Cannabis Medicinal e do Cânhamo Industrial da OAB/AL, membro do GT que busca normatizar protocolo clínico no SUS da Secretaria de Saúde de Alagoas, ex-servidor público federal do Ministério da Educação.