
Desabastecimento à vista: como a crise americana vai acelerar a seleção natural do mercado brasileiro
Crise da industria canábica preocupa empresários americanos | CanvaPro
Publicado em 21/11/2025A indústria americana de cânhamo acabou de implodir.
Em novembro de 2025, o Congresso dos EUA aprovou a H.R. 5371, uma lei que elimina 95% do mercado de canabinóides — uma indústria de $28 bilhões. E antes que você pense "problema deles", preciso te contar: isso vai bater no Brasil com força total nos próximos 12 meses.
No meu último artigo, falei sobre a seleção natural do mercado brasileiro de cannabis medicinal — 500 empresas competindo, ticket médio caindo 7%, corrida para o fundo do preço. A pergunta que ficou foi: "quando a música parar, quem vai ter cadeira para sentar?"
Agora a música está parando mais rápido do que esperávamos. E não por causa da regulamentação brasileira — mas por causa do colapso da nossa cadeia de suprimentos internacional.
O Choque Externo que Ninguém Calculou
Aqui está o problema: a grande maioria dos produtos de cannabis medicinal importados para o Brasil via RDC 660 vem dos Estados Unidos. Relatórios da própria Anvisa apontam os EUA como o "principal fornecedor", deixando outros mercados como Canadá, Colômbia e Uruguai em posições secundárias. Óleos de CBD full-spectrum, tinturas, cápsulas — tudo que os pacientes brasileiros compram hoje depende de fabricantes americanos.
A H.R. 5371 não proíbe só produtos psicoativos como o Delta-8. Ela estabelece um limite tão baixo (0,4 miligramas de THC total por embalagem) que torna ilegal fabricar mais de 90% dos produtos de CBD não psicoativos que existem no mercado americano hoje.
A matemática é simples: um frasco típico de 30ml de óleo full-spectrum tinha permissão para até 3mg de Delta-9 THC pela lei antiga. A nova lei permite apenas 0,4mg de THC Total (incluindo THCA) por frasco — uma redução de 87,5%. Qualquer óleo extraído da planta inteira naturalmente contém traços de THCA que, somados, explodem esse limite. É matematicamente impossível fazer full-spectrum dentro dessa regra.
É crucial entender: a lei americana não mirava o CBD, mas o matou por tabela. Esse limite, criado para banir produtos psicoativos, é tão restritivo que varre junto quase todo o mercado de CBD full-spectrum que os pacientes brasileiros tanto buscam pelo efeito comitiva.
Traduzindo: a partir de novembro de 2026, a fonte secou.
Não é questão de "pode faltar". Vai faltar. E as empresas brasileiras que dependem exclusivamente de importação dos EUA vão descobrir, da pior forma possível, o que significa ter um modelo de negócio baseado numa única origem geográfica sujeita aos humores políticos de outro país.
A Vulnerabilidade Estratégica do Modelo Atual
Vou ser direto: o mercado brasileiro de cannabis medicinal construiu sua operação inteira sobre areia movediça. A RDC 660 criou um ecossistema onde centenas de empresas fazem exatamente a mesma coisa — facilitam importação. O diferencial? Nenhum. O único jogo que sobrou foi preço.
E agora, quando a gente mais precisa de resiliência na cadeia de suprimentos, descobrimos que quase 100% dos derivados de cânhamo no Brasil são importados. Zero autossuficiência. Zero controle sobre a cadeia. Zero proteção contra choques externos.
Nos últimos seis meses, recebi pelo menos 15 ligações de empresários querendo vender o negócio ou buscando fusão. Esse número vai triplicar em 2026 quando o desabastecimento começar de verdade.
A fase darwiniana que eu descrevi no artigo anterior? Ela acabou de entrar no modo acelerado.
Quem Vai Quebrar Primeiro
As empresas mais vulneráveis a esse choque são previsíveis:
1. Facilitadores Puros de Importação
Se o seu negócio é só intermediar pedido de paciente com fornecedor americano, você tem 365 dias de vida útil. Quando os fabricantes dos EUA pararem de produzir (porque vão estar ilegais), você não tem produto para vender. Simples assim.
2. Quem Compete Exclusivamente por Preço
Se a sua única vantagem competitiva é "a gente cobra R$50 a menos que o concorrente", você já estava morto antes dessa crise. Com desabastecimento, os produtos que sobrarem vão ter aumento de preço, não redução. E aí você vai competir como?
3. Empresas Sem Reserva de Caixa
A fase de transição para novos fornecedores vai exigir capital. Homologação de novos produtos, testes de qualidade, certificações, logística diferente. Quem está operando no limite do fluxo de caixa não aguenta essa transição.
A Adaptação Darwiniana: Três Movimentos Estratégicos
As empresas que vão sobreviver — e prosperar — nessa crise são as que já estão fazendo três movimentos agora:
Movimento 1: Diversificação Geográfica com Padrão BPF
Parar de depender 100% dos EUA. Começar ontem a homologar fornecedores no Canadá, Colômbia e Israel. Mas não é qualquer fornecedor — as empresas inteligentes estão buscando fornecedores em jurisdições com regulamentação BPF (Boas Práticas de Fabricação) consolidada, que podem garantir o insumo sob os padrões exigidos pela Anvisa, eliminando o risco regulatório da "ficção legal" americana.
Sim, é mais caro. Sim, é mais complexo. Mas é a diferença entre ter produto que passa na certificação da Anvisa em 2027 ou não ter produto nenhum.
Movimento 2: Importação de API a Granel e Verticalização Invertida
Quem tem capital está pivoteando para a Importação de Insumo Farmacêutico Ativo (API) a granel (bulk). Essa estratégia permite formulação, envase e controle de qualidade no Brasil, que é a verdadeira verticalização sob a RDC 327.
Esta tática é o que permitirá reduzir o custo final e ganhar escala, aproveitando a recente autorização da Anvisa para fabricação de IFA (Insumo Farmacêutico Ativo) de Cannabis no País. Quando o cultivo nacional for regulamentado (e vai ser, a crise americana acelerou essa pauta), quem já tiver estrutura de manufatura farmacêutica no Brasil sai na frente.
Movimento 3: Fortalecimento do Acesso Social
As associações de pacientes (ABRACE, AMA+ME) com autorização judicial representam um mecanismo crucial de acesso subsidiado. Elas existem para cobrir o vácuo deixado pelo alto custo das vias formais de importação.
Embora não operem sob os padrões de BPF exigidos pela RDC 327, sua força reside em garantir equidade no acesso e em exercer pressão judicial por uma solução de cultivo nacional. Para os pacientes, são uma alternativa concreta quando o desabastecimento apertar.
O Efeito Cascata: Farmácias, Médicos e Pacientes
Essa crise não afeta só as empresas de importação. O efeito cascata vai ser brutal:
Farmácias: A RDC 327 revisada vai permitir que produtos com menos de 0,2% de THC sejam vendidos com receita branca em farmácias. Mas se não tem produto para importar, não adianta ter autorização para vender.
Médicos: Prescritores que começaram a ganhar confiança para receitar cannabis vão enfrentar pacientes sem acesso aos produtos. Isso pode criar um retrocesso na curva de adoção médica justamente quando ela estava decolando.
Pacientes: Dezenas de milhares de pessoas que dependem desses tratamentos vão ficar sem alternativa. É diferente de remédio controlado onde tem genérico, aqui não tem substituto imediato. O paciente simplesmente fica sem.
A Consolidação Acelerada
Falei no artigo anterior que nos próximos 18 meses veríamos consolidação. Agora não são 18 meses — são 12. E não vai ser consolidação orgânica, vai ser consolidação forçada.
Vamos ver três movimentos simultâneos:
1. Aquisições de emergência: Empresas com capital comprando concorrentes em dificuldade por preço de liquidação.
2. Fusões defensivas: Pequenos players se juntando para dividir custo de homologação de novos fornecedores com padrão BPF.
3. Fechamentos em massa: Empresas que entraram no mercado só pela "onda" vão simplesmente desaparecer.
É exatamente o que aconteceu com o e-commerce depois da bolha de 2001. Quem tinha fundamento sobreviveu e cresceu. Quem estava surfando a onda, afundou.
O Argumento Definitivo para Regulamentação Nacional
Tem um lado positivo nessa crise toda: ela é o argumento definitivo, inquestionável, irrefutável para a urgência da regulamentação do cultivo nacional no Brasil.
Durante anos, o debate sobre cultivo ficou travado entre "segurança pública", "treaty obligations" e "viabilidade econômica". Agora a gente tem um argumento novo e muito mais forte: soberania estratégica em saúde pública.
Não dá para ter dezenas de milhares de pacientes dependentes de importação quando a fonte pode ser cortada por decisão política de outro país da noite para o dia. É questão de segurança nacional em saúde.
O STJ, que recentemente adiou sua decisão sobre o tema para 2026, acabou de receber de presente o melhor case study possível de por que o Brasil precisa de autossuficiência. A autossuficiência deixou de ser um diferencial competitivo ou um debate econômico; ela se tornou uma questão de segurança nacional em saúde, para garantir a continuidade do tratamento de milhares de pacientes. A decisão não é mais "se", é "quando" e "como", a pauta passa pelo reconhecimento de que a dependência externa compromete a segurança nacional em saúde.
A Janela de Oportunidade
Agora, se você está lendo isso e vendo só crise, você está olhando errado. Crises são os melhores momentos para separar quem tem visão estratégica de quem está só reagindo.
As empresas que vão dominar o mercado brasileiro de cannabis medicinal nos próximos 10 anos são as que estão usando esse momento para:
● Negociar urgentemente com fornecedores BPF-certificados em Canadá, Colômbia e Israel
● Estruturar importação de API a granel para verticalização sob RDC 327
● Construir relacionamento real com médicos (não só lista de contatos)
● Estruturar compliance de nível farmacêutico (não improvisação)
● Criar nicho defensável (especialização clínica verdadeira)
Quando a regulamentação se consolidar — e ela vai — o mercado brasileiro pode chegar tranquilo a 2 milhões de pacientes. Mas vai ser dominado por empresas bem estruturadas, não por 500 facilitadores fazendo a mesma coisa.
A Música Está Parando
No artigo anterior, terminei com a pergunta: "quando a música parar, você vai ter uma cadeira para sentar?"
A música está parando agora. Mais rápido do que esperávamos. Por um motivo que a gente não controlava.
As empresas que vão ter cadeira são as que já estão se movendo. As que estão esperando "ver como as coisas se desenrolam" vão descobrir que quando as coisas se desenrolarem, já será tarde demais.
A seleção natural do mercado brasileiro de cannabis medicinal entrou em modo acelerado. E diferente da evolução biológica, aqui você pode escolher se adaptar antes da pressão te forçar a isso.
A pergunta agora é: você vai ser proativo ou reativo?
A opinião do entrevistado não reflete necessariamente a opinião editorial da Sechat.

Marcelo De Vita Grecco é consultor, mentor, advisor e cofundador da The Green Hub.
