Direito de não sentir dor
Passados dez anos desde a primeira paciente de cannabis do Brasil, ainda não avançamos para além do direito à importação
Publicado em 14/01/2024Anny Fischer, hoje uma linda adolescente, foi o motorzinho que me impulsionou a lutar pela cannabis medicinal. Conheci o caso de Anny há uma década, quando ainda era deputada Federal, e a sua realidade à época era marcada pela dor – tudo o que não deveria caber na infância de nenhuma criança. Eram frequentes as crises de epilepsia provocadas pela síndrome rara, a CDKL5, e Anny tinha em média 60 convulsões por semana. Seu desenvolvimento regrediu e a pequena não falava, não andava, não tinha controle de pescoço e tronco.
Foi assim que conheci a família Fischer e foi assim que em 2014 promovemos uma grande audiência pública em que convidamos a ANVISA para debater o direito à importação do óleo de CBD. A discussão foi um divisor de águas no Brasil, uma vez que jogou luz sobre a questão e garantiu que a família Fischer e outras tantas ganhassem o direito de importar a medicação.
O resultado desse importante passo é visto pela qualidade de vida que muitas pessoas passaram a ter. No caso de Anny, as crises passaram a ser quase raras, perdendo espaço para uma nova rotina, marcada pela redescoberta de uma vida com possibilidades. Algo que até então a família Fischer desconhecia.
Passados dez anos, contudo, ainda não avançamos para além do direito à importação. O PL 399/ 2015, uma proposta séria e robusta, em tramitação na Câmara, ainda não avançou diante da forte ala conservadora entre os deputados. Um desserviço aos pacientes que precisam que os remédios à base de cannabis sejam produzidos aqui no Brasil.
Diante dessa morosidade perversa, resolvi apresentar uma proposta para tramitar no Senado, levando em conta todos os gargalos e necessidades que envolvem a regulamentação da cannabis para fins medicinais. O PL 5511/2023, que apresentei na semana passada, chega para atender os principais anseios da sociedade, tanto de pacientes, quanto de produtores que desejam investir e gerar empregos em nosso país. Tudo com o objetivo de democratizar o acesso a quem precisa.
Além do foco na saúde, incluindo também a medicina veterinária, o projeto lança diretrizes para o florescente mercado de cânhamo, alavancando oportunidades no setor industrial e incentivando pesquisas científicas e também o agronegócio.
Importante dizer que o nosso projeto detalha a possibilidade de cultivo caseiro da planta, garantindo a autorização de plantio da cannabis para uso pessoal, mediante prescrição médica, em quantidade suficiente para o tratamento definida por um médico prescritor. Essa é uma demanda antiga de muitos pacientes, mas é importante dizer que a pessoa deverá ainda obter autorização da Anvisa, que também fará a fiscalização.
No texto, a ideia é que a Agência autorize o cultivo e também faça a fiscalização e registro dos medicamentos produzidos com cannabis, do mesmo modo que já atua com os demais remédios disponíveis no país. Ou seja, falamos de uma proposta abrangente e séria, que contará, por meio de regulamento, com total fiscalização dos órgãos de segurança pública.
Enfatizo aqui a urgência do nosso Parlamento, do governo e de toda a sociedade olharem sobre esse tema sem preconceitos, com seriedade e aprofundamento, porque sem legislação o que impera é a clandestinidade. Não faz sentido essa ser a opção de crianças, adultos e idosos que precisam de um tratamento de saúde e não podem arcar com os custos de importação ou com o alto valor dos medicamentos comercializados hoje nas farmácias brasileiras.
Espero que os senadores escutem a sociedade, que tem se mostrado por inúmeras pesquisas de opinião que os brasileiros estão maduros para o uso medicinal da cannabis. Eu mesma realizei junto ao DataSenado uma pesquisa em 2019 e entre outros dados, os resultados mostraram que 79% da população é a favor de que medicamentos feitos a partir da planta sejam disponibilizados no SUS, nosso Sistema Único de Saúde.
De acordo com a empresa de dados Kaya Mind, hoje, 430 mil brasileiros realizam tratamentos com medicamentos à base de cannabis, um crescimento de 130% em relação ao ano passado. Mas sem cultivo local, a maior parte dos remédios vêm de fora. Não por acaso, a importação ainda domina 51% do mercado.
O Congresso tem o dever de cumprir o seu papel e garantir que as pessoas que precisam tenham acesso ao medicamento mais indicado para aliviar suas dores. Costumo dizer que o Parlamento existe para criar Leis que melhorem a vida das pessoas. Nunca o contrário. Neste sentido, fechar os olhos para a necessidade de milhares de pessoas que precisam da cannabis para fins medicinais é omissão, um crime silencioso e perverso.
Estamos quase em 2024, passamos uma década assistindo quem pode importar a cannabis se tratar, enquanto o mais pobre aguarda e sofre. Já passou da hora de caminharmos junto ao desenvolvimento e atenuar as desigualdades em nosso país. Só assim vamos garantir que o brasileiro tenha o direito de não sentir dor.
As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e de responsabilidade de seus autores.
Mara Gabrilli é senadora da República pelo estado de São Paulo, representante do Brasil no Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e fundadora do Instituto Mara Gabrilli.