Na bagagem da Laura
Faz 22 anos que vivo de vender drogas e ler livros
Publicado em 14/07/2024Durante a primeira década foi um bar em uma esquina de Montevidéu. Em frente à porta de entrada havia um enorme balcão de madeira maciça, com ranhuras cheias de sujeira, escuro, que resistiu por 12 anos intacto e um piso, também de madeira, que foi afinando de tanto ser lustrado, lixado e resinado, para encobrir a passagem de centenas de pessoas que o percorriam todos os fins de semana. Essa condição de ter que beber muito álcool, para acompanhar os clientes, e ao final do dia fechar o caixa, contar as notas molhadas de suor acumulado, uísque e cerveja, me fez desenvolver mecanismos para ser um usuário de drogas funcional.
Mas um bar se impregna do cheiro de copos virados, um aroma doce e etílico de destilado seco. Além disso, traz a convivência com a noite, a cocaína e uma presença solitária, afastada, na beira do balcão. Nesses momentos, quando havia pouca gente, minha companhia eram os livros. Não bebo mais álcool, mas nunca mais me separei deles.
Foram muitos os livros que li nesse percurso pelas drogas. Com álcool e cocaína as histórias sujas de Faulkner, a poesia de Idea Vilariño e a violência estética de Rubens Fonseca, a maconha que me permitia o deleite dos contos de Felisberto, a humildade iluminada de Carolina Maria de Jesus e a maestria de Gabo, além dos lisérgicos que me mergulhavam como uma verdade absoluta na literatura de Lispector, nos mundos de Armonía Somers, nas ondas de Virginia Woolf e nas viagens de Kerouac. Em um momento lia tanto que as novidades literárias não me bastavam, e os livros os escolhia pelo cheiro. Percorria as prateleiras das livrarias pegando os exemplares, mas nem lia a contracapa, era o perfume que me fazia comprá-los.
Vivia no Uruguai, um país que se preparava para legalizar a maconha, e as ruas começaram a se encher do cheiro das flores. Daquele aroma de maconha prensada dos estádios de futebol, começaram a surgir outras gamas de perfumes. Um Uruguai orgulhoso de cultivar saiu às ruas sem nenhuma vergonha, mas nada, nada se compara ao que Laura trouxe, certo dia, em sua mala.
Depois do bar e com a legalização da maconha tive um growshop e também organizava, com Laura e com outros, associações civis para formar clubes canábicos. Começamos a cultivar com alguns clones que haviam sido selecionados por growers locais, mas, depois de uma viagem a Barcelona, Laura entrou no growshop e abriu sua mala de mão preta no meio da sala de reuniões. Sobre uma enorme mesa de vidro, rodeada por uns sofás também pretos e circulares, dispostos sobre um piso de vinil branco, manchado e descolado, em uma sala com um permanente cheiro de extrações e bongs, depositou diamantes brutos. Desde esse dia tudo mudou.
Doze clones moribundos, depois de horas de viagem, trazidos de forma totalmente irregular, uma seleção de genéticas dos melhores breeders. Meu então sócio, Chacrero, rapidamente os colocou em sua incubadora e os resgatou todos. Ainda lembro do cheiro desses primeiros cultivos, a primeira 24K que chegou ao continente, a SkyWalker que as novas gerações renomearam, mas cujo aroma do clone original que chegou à América do Sul ainda sinto por aí. Por sorte essas genéticas se espalharam por toda a região e pelo Brasil também.
Com essa genética não só se plantou a melhor maconha da década de 10, misturando desenvolvimento de breeders europeus e métodos de cultivo daqui, mas também se fizeram extratos que tiveram excelentes resultados em pesquisas pré-clínicas em modelos animais com autismo, e se levaram escondidos óleos para doar a crianças sem recursos na Bahia. Até hoje, segundo dizem os médicos, melhores óleos de cannabis não chegaram a Salvador.
Recentemente o Google me avisou que eu tinha que fazer backup do meu histórico de localizações, porque eles não iriam mais fazer, e, por isso, acabei vendo todos os lugares que eu visitei nos últimos anos, em um mapa-múndi pintado de pontos vermelhos. Exceto Oceania, estive em todos os continentes, e visitei mais de cem cidades. A grande maioria dessas viagens está vinculada ao mundo das substâncias controladas.
Foram muitas horas de deslocamento e sempre as fiz acompanhada de livros. Neste caminho li, também, muitos livros sobre drogas. Esta coluna que inauguro pretende ser um percurso por algumas das histórias que vivi nesta viagem e, sobretudo, pelo que aprendi com o cheiro desses livros.
Marco Algorta mora no Uruguai e está na indústria da cannabis desde o começo. Ele foi um dos promotores da Câmara das Empresas de Cannabis Medicinal, sendo eleito o primeiro presidente. Marco deu palestras nos Estados Unidos, Canadá, México, Argentina, Uruguai e Brasil, é pai de cinco filhos e magister em narrativa e redação criativa.