Para não dizer que não falei das flores: bioeconomia e cadeias produtivas de cannabis no Brasil

Para não dizer que não falei das flores: bioeconomia e cadeias produtivas de cannabis no Brasil

Da medicina aos biomateriais, planta surge como ativo estratégico para a soberania produtiva e a consolidação da bioeconomia no Brasil

Publicado em 02/11/2025

Flores carregam símbolos poderosos. São mensageiras de ciclos, de resistência silenciosa e de renovações profundas. No Brasil colonial, uma planta de flores discretas, o cânhamo, já era cultivada para produzir fibras que reduziram a dependência do linho inglês. Séculos depois, é novamente uma planta que floresce no centro de debates sobre inovação, sustentabilidade e soberania produtiva: a cannabis. Falar dela hoje é falar de passado, presente e, sobretudo, de futuro.

No universo da cannabis, as flores têm um significado literal e determinante. A espécie apresenta plantas masculinas e femininas, cada qual com funções distintas: enquanto os machos produzem pólen e são fundamentais para reprodução e produção de sementes, somente as flores das plantas femininas concentram os canabinoides e terpenos, compostos bioativos responsáveis pelos efeitos medicinais e farmacológicos que hoje mobilizam pesquisas, regulações e cadeias produtivas em todo o mundo.

Essas flores femininas, ricas em tricomas glandulares, são a matéria-prima central da cadeia da cannabis medicinal, utilizadas para a produção de medicamentos, fitoterápicos e Insumos Farmacêuticos Ativos Vegetais (IFAV). É nelas que se encontra a diversidade química que fundamenta o uso terapêutico da planta em condições neurológicas, inflamatórias, autoimunes cuidados paliativos, entre outros. Assim, a metáfora das flores se transforma em realidade concreta: são elas que sustentam a base científica e econômica de uma cadeia produtiva emergente, que conecta o Brasil à fronteira da inovação biomédica.

O desenvolvimento de novas cadeias produtivas é um dos alicerces de qualquer estratégia de transformação econômica e tecnológica. E nenhuma outra área traduz tão bem essa convergência quanto a agricultura, que hoje se reposiciona como pilar da bioeconomia. No caso brasileiro, a cadeia da cannabis medicinal e a reintrodução da cadeia do cânhamo industrial surgem como temas estratégicos para a construção de uma bioeconomia forte e diversificada. A recente Estratégia Nacional de Bioeconomia (instituída pelo Decreto nº 12.044/2024) oferece um marco político e conceitual para essa agenda, reconhecendo que espécies vegetais versáteis e de alto valor agregado podem desempenhar papel crucial na transição para modelos produtivos sustentáveis.

A cannabis destaca-se por seu potencial multissetorial. Uma única espécie pode abastecer inúmeras bioindústrias, produzindo biomateriais como bioplásticos, biocombustíveis, bioinsumos agrícolas, materiais construtivos, fibras e celulose de qualidade superior e com menor impacto ambiental. Mesmo antes de uma regulamentação específica para o cânhamo voltado à produção de fibras e sementes, os coprodutos e resíduos da cadeia medicinal já configuram um fluxo de biomassa valioso. Sob a lógica da bioeconomia e da economia circular, esses recursos não podem ser negligenciados: representam oportunidades reais de geração de riqueza biológica, inovação e novos negócios sustentáveis.

Por outro lado, mais do que uma commodity ou uma cultura agrícola, a cannabis pode ser usada como símbolo do conceito contemporâneo de “Saúde Única” (One Health), integrando saúde humana, saúde animal e saúde ambiental. Seu uso medicinal dialoga diretamente com desafios de saúde pública, enquanto seu cultivo e aproveitamento industrial podem substituir insumos fósseis e reduzir impactos ecológicos, articulando ciência, economia e sustentabilidade.

A pesquisa científica e tecnológica é peça central para transformar esse potencial em realidade. Embora o uso medicinal da cannabis seja regulamentado no Brasil há mais de uma década, a produção nacional ainda não se consolidou, e sua regulamentação segue em discussão. O país está, portanto, diante de uma escolha estratégica: permanecer como importador de tecnologias e insumos, ou assumir o protagonismo no desenvolvimento científico, tecnológico e produtivo de suas próprias cadeias. Avançar com autonomia e inteligência significa conectar inovação, desenvolvimento territorial e sustentabilidade, transformando potencial em soberania produtiva.

Este texto não termina aqui. Ele é um convite para seguir a conversa. Os temas que aqui emergem como sementes, ciência, regulação, bioeconomia, inovação agrícola e soberania produtiva, ganharão profundidade na minha participação no Cannabis Connection 2025, onde o que hoje é reflexão se transforma em análise compartilhada, construção coletiva e caminho de implementação real. Junte-se a nós neste debate. Clique aqui e garanta seu ingresso. 

 Biografia do Autor Beatriz Emygdio
Beatriz Emygdio

Pesquisadora da Embrapa e presidente do Comitê Permanente de Assessoramento Estratégico em Cannabis Beatriz Marti Emygdio possui formação em Ciências Biológicas, mestrado em Melhoramento Genético de Plantas e doutorado em Ciência e Tecnologia de Sementes. É pesquisadora da Embrapa desde 2001. Atua na área de recursos genéticos e melhoramento de culturas anuais. Uma das pioneiras na defesa da cannabis no Brasil, participou da definicao de linhas de pesquisa e estruturação do Programa de Pesquisa com Cannabis da Embrapa. Atualmente, como Presidente do Comitê Permanente de Cannabis (CPCAN), assessora a Diretoria-Executiva da Embrapa em todas as iniciativas relacionadas ao tema. Atua na estruturação de redes e projetos de pesquisa com cannabis, na análise e proposição de marcos regulatórios para o cultivo de cannabis no Brasil e na definição de estratégias e políticas públicas para subsidiar o estabelecimento de cadeias produtivas nacionais, inclusivas e sustentáveis.