Com a vitória de Lula, o que muda na legislação sobre a cannabis no Brasil

Saiba o que alguns juristas especializados em políticas públicas à respeito da cannabis têm a dizer

Publicada em 01/11/2022

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Por João R. Negromonte

No último domingo (30), o país testemunhou a eleição mais acirrada da história, da qual o apoiador da esquerda, Luiz Inácio Lula da Silva, levou a vitória sobre seu opositor Jair Bolsonaro. Nunca antes havia se visto tamanha polarização, que dividiu completamente opiniões fundamentalmente opostas no espectro político.

O cenário é de certo modo complicado pois, o que se viu até o momento, foi uma política proibicionista e repressiva contra as drogas que, inclusive, falhou miseravelmente, colocando na cadeia em sua grande maioria pretos, pobres e periféricos. É importante lembrar, que o próprio Lula foi quem sancionou a atual lei de drogas (n° 11.343) em 2006, cujas consequências ainda têm um impacto negativo na sociedade brasileira. 

Então, o que podemos esperar do próximo governo no que se refere a legislação da cannabis no Brasil? 

Esse foi o questionamento feito a alguns players do ecossistema canábico nacional e, neste artigo, conversamos com alguns juristas que deram seu parecer sobre a pauta. 

Para Cecilia Galício, advogada, mestre em Direito Internacional Público pela Universidade de Lisboa, vice-presidente do Conselho Municipal de Políticas Públicas de Drogas e Álcool - COMUDA e conselheira-titular do Conselho Estadual de Política sobre Drogas de São Paulo - CONED/SP, a sociedade deve esperar por um avanço nesses temas, mas não sem provocá-los "Como juristas, já vimos avanços, o exemplo é o recente reconhecimento pelo STJ do cabimento dos habeas corpus para o autocultivo, que é um grande avanço e uma grande conquista para a sociedade”. 

Cecilia Galício (Imagem: arquivo pessoal)

Quando questionada pela falta de posicionamento sobre  o tema da cannabis por parte do recém-eleito à presidência da república, Cecilia diz: “Atribuo a ausência de posicionamentos mais claros sobre esse tema ao ambiente hostil que se formou com a  polarização, já que a fábrica de fake news ativada durante a campanha propôs uma distorção desses assuntos, tornando o levante dessas pautas uma faca de dois gumes para a oposição”.

A advogada destaca também que em uma sociedade vulnerabilizada, marcada por um déficit enorme de políticas públicas, sem compromisso com a educação e principalmente tendo contribuído com o desmonte da pesquisa científica, o debate, principalmente a respeito de drogas, fica comprometido. 

“Não seria possível suprir esse déficit num período tão curto e colocá-los em discussão naquele momento, poderia ter sido desastroso", ressalta ela. 

Quem também deu seu parecer, foi o advogado, diretor executivo da Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC), especialista em direito regulatório e membro da Comissão de Assuntos Regulatórios da OAB-DF, Rafael Arcuri, que explicou que a campanha adotada por Lula não corresponde necessariamente às pautas defendidas pelo governo.

“É preciso entender que essa foi uma das eleições mais disputadas da história do país e que a campanha do presidente eleito entendeu isso. Temas progressistas muito polêmicos foram deixados, propositalmente, de fora”, destacou o jurista.

Arcuri disse também, que “agora, a expectativa é que o governo comece a levantar os temas que considera mais relevantes, ainda que conflitantes com a base mais conservadora. Ao mesmo tempo, a forma e o momento que isso será feito é difícil de prever. Temos um Congresso Nacional conservador e isso demandará muita articulação”.

Acesso à informação

A falta de informação, sempre foi uma das principais barreiras que impedem o andamento da pauta da cannabis. Arcuri diz que ela, a desinformação, não se confunde com o posicionamento ideológico. 

“Uma ideologia mais conservadora e a falta de informações corretas podem andar juntas, mas não necessariamente. Por isso, é preciso informar as pessoas ao máximo do que é essa agenda regulatória, seus benefícios econômicos, segurança para a população, potencial de geração de empregos, etc. Com isso, conseguimos reduzir o número de pessoas contrárias e trazer os grandes players para a mesa do debate”, salientou.

Rafael Arcuri (Imagem: arquivo pessoal)

Qual o papel da sociedade civil neste momento?

A população cumpre um papel fundamental no que se refere a legislação não só da cannabis, mas de todos os aspectos que envolvem a política, pois é dela o papel de cobrar os parlamentares sobre soluções públicas para a sociedade. Contudo, é importante lembrar que tal pressão deve ser feita de forma consciente e responsável, respeitando os direitos de todos.

“O maior empecilho será a competição entre os modelos de práticas, com divergências grandes entre social e capital. Para avançar será necessário achar um ponto de equilíbrio coerente com o Brasil. Nos discursos após a eleição, Lula falou de conselhos para definir políticas públicas, talvez o caminho seja um grande debate público na arena de um conselho social sobre o tema”, revela Emílio Figueiredo, mestre pelo programa de pós-graduação em justiça e segurança do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da Universidade Federal Fluminense (UFF) e fundador da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas.

Emílio Figueiredo (Imagem: Arquivo pessoal)

O advogado revelou também, ao ser questionado sobre a campanha do Lula não ter abordado pautas como legalização da cannabis e do aborto, Figueiredo é conciso: “Ele não se esquivou, ele disse que a legalização da cannabis é uma decisão do povo delegada ao parlamento. Acredito que nada é mais forte que uma ideia cujo o tempo chegou”.

O que pensa o partido do presidente eleito?

Em 21 de junho, um documento publicado pelo partido de Lula (PT), evidenciou orientações das quais o presidente eleito deve seguir em relação à política de drogas no Brasil. O relatório, denominado “Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil (2023-2026), revela que “o país precisa de uma nova política de drogas, intersetorial e focada na redução de danos, prevenção, tratamento e atenção ao usuário”, afirma a carta.

Além disso, propõe a “substituição do atual modelo de guerra de combate ao tráfico por estratégias de enfrentamento e desmantelamento de organizações criminosas, baseadas no conhecimento e na informação”. A melhoria da qualificação técnica dos policiais também está contemplada.

Claro que não se pode esquecer que, quando governador de São Paulo, seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), teve uma política antidrogas marcada por violência e brutalidade, o que gerou um aumento na letalidade policial. 

Entretanto, segundo os especialistas, é preciso cautela neste momento, pois, mesmo com o novo comandante, o país precisará de tempo para conseguir, de fato, criar políticas públicas concretas, não só para a cannabis, mas em todas as áreas que necessitam de manutenção e assistência, afinal de contas, não se muda um país da noite para o dia.