Uso de Cannabis Medicinal no Tratamento da Síndrome de Dravet: Evidências Clínicas e Implicações
Resumo
A Síndrome de Dravet (SD) é uma epilepsia genética grave, com início na infância, caracterizada por crises febris prolongadas, resistência a medicamentos, comprometimento cognitivo, motor e comportamental. Em função da refratariedade ao tratamento convencional, pesquisas recentes têm avaliado o uso de canabidiol (CBD) como adjuvante terapêutico. Este artigo reúne e analisa evidências clínicas recentes sobre eficácia, segurança, dosagens, e lacunas existentes, com vistas à aplicação prática, incluindo no contexto do SUS de São Paulo.
Introdução
A Síndrome de Dravet é causada em muitos casos por mutações loss‐of‐function no gene SCN1A, que codifica subunidades dos canais de sódio neuronais, resultando em disfunção das interneurônias inibitórias. As crises epilépticas começam geralmente no primeiro ano de vida, frequentemente associadas a febres, e progridem para convulsões múltiplas, resistentes ao tratamento com os anticonvulsivantes clássicos. Além disso, há acometimentos do desenvolvimento neuropsicomotor, déficits cognitivos, atraso no desenvolvimento da linguagem, e comorbidades comportamentais.
Diante disso, há crescente interesse em terapias alternativas ou adjuvantes. O CBD, componente não‐psicoativo da cannabis, é o principal candidato estudado, dado seu perfil teórico de modulação neuromodulatória, capacidade anti‐convulsivante em modelos animais e em ensaios clínicos.
Métodos
Realizou‐se revisão narrativa e sistemática da literatura em bases como PubMed até outubro de 2023, focalizando ensaios clínicos randomizados, extensões de longo prazo, e meta‐análises que avaliaram o CBD ou formulações que o contenham (isolado ou combinado) em pacientes pediátricos com Síndrome de Dravet. Foram considerados desfechos principais: redução de crises convulsivas convulsivas/febrile convulsions, ≥ 50% de redução da frequência de crises, perfil de segurança/adversos, interações medicamentosas, e impacto em qualidade de vida.
Resultados
Ensaios clínicos controlados
- Um ensaio randomizado de segurança e dose (5, 10 ou 20 mg/kg/dia de CBD vs placebo) em crianças de 4 a 10 anos com SD mostrou que as exposições plasmáticas de CBD crescem proporcionalmente à dose, e que os eventos adversos mais comuns foram febre, sonolência, diminuição do apetite, sedação, vômito, ataxia e comportamento alterado. Também foi observado aumento das transaminases em casos que associavam valproato. (PubMed)
- Em extensão aberta de longo prazo (GWPCARE5), pacientes receberam solução oral de CBD altamente purificada (2,5 a até 30 mg/kg/dia) como adjuvante. O estudo indicou redução sustentada na frequência de crises convulsivas e aceitável perfil de segurança ao longo do tempo. (PubMed)
Meta‐análises / Revisões sistemáticas
- Meta‐análise de três ensaios controlados com 359 participantes (228 com CBD, 131 placebo) mostrou que o tratamento adjuvante com CBD aumentou significativamente a probabilidade de redução ≥ 50% das crises convulsivas convulsivas, com razão de risco (RR) ≈ 1,69 (IC 95%: 1,21-2,36; p=0,002). Eventos adversos foram mais frequentes no grupo com CBD, mas muitos foram leves/moderados. (PubMed)
- Revisão narrativa recente corrobora esses achados: redução consistente de frequência de crises, algumas vezes atingir completa remissão de crises convulsivas, segurança geral aceitável, embora com necessidade de monitorar elevação de transaminases, interação com outros antiepilépticos, efeitos gastrointestinais e sedativos. (PubMed)
Estudos com formulações contendo THC ou extratos vegetais
- Um estudo aberto com extrato da planta que inclui CBD (≈ 100 mg/mL) e baixo teor de THC (≈ 2 mg/mL), nomeadamente o TIL-TC150, foi testado em crianças com SD: doses de CBD entre ≈ 7-16 mg/kg/dia e THC entre ≈ 0,14-0,32 mg/kg/dia. Observou‐se redução mediana de crises motoras de ~70,6%, taxa de respondentes ≥ 50% em ~63%, melhoria nos índices de espículas no EEG e em qualidade de vida. Efeitos adversos incluíram sonolência, anorexia, diarreia; houve também elevação de enzimas hepáticas e plaquetas em associação com valproato. (PubMed)
Dados pré‐clínicos
- Modelos animais (camundongos com mutação heterozigota de Scn1a) demonstraram que o CBD reduz duração e severidade de crises induzidas por calor, frequência de crises espontâneas, e melhora déficits comportamentais (por ex., interação social) associados à SD. (PubMed)
Discussão
As evidências acumuladas indicam que o CBD adiciona benefício relevante em pacientes com Síndrome de Dravet refratária, reduzindo de modo clinicamente significativo a frequência de crises convulsivas em muitos casos, melhorando qualidade de vida e com perfil de segurança razoável.
No entanto, existem limitações:
- Variabilidade da resposta — nem todos os pacientes respondem igualmente; alguns mantêm crises frequentes apesar de CBD;
- Efeitos adversos — embora na maioria leves ou moderados, destacam‐se elevações de enzimas hepáticas, especialmente em combinação com valproato; sedação/sonolência, interações farmacológicas, necessidades de ajustes de dose;
- Falta de dados sobre formulações que contenham THC ou uso prolongado em diferentes faixas etárias, bem como efeitos a longo prazo sobre desenvolvimento cognitivo, aprendizado, motor etc.;
- Padronização — diferentes produtos, pureza, potência, regulação variam muito entre países e mesmo entre estudos;
- Custos e acesso — barreiras regulatórias, registro, aprovação por órgãos sanitários, financiamento público etc.
Implicações Práticas
No contexto do SUS de São Paulo:
- A Lei estadual nº 17.618/2023 regulamentou que os medicamentos à base de cannabis, em especial canabidiol, serão disponibilizados gratuitamente para pacientes com Síndrome de Dravet, Síndrome de Lennox-Gastaut e Esclerose Tuberosa, desde que os medicamentos tenham registro na Anvisa e no país de origem, e mediante prescrição médica e outros critérios. (BOL)
- Para acesso, será necessário laudo médico, prescrição justificando uso, exames laboratoriais e de EEG, presença nos formulários oficiais, além de comprovação da impossibilidade de aquisição no sistema privado. (Biblioteca Jurídica)
- Número de doses, formulação precisa, monitoramento laboratorial (ex.: enzimas hepáticas, função renal, interações medicamentosas, ajuste de dose com base em tolerância e resposta) será fundamental para segurança e eficácia.
Conclusão
As evidências científicas atuais suportam fortemente o uso do CBD como terapia adjuvante para Síndrome de Dravet, apresentando reduções clínicas significativas de crises convulsivas e melhoras em qualidade de vida, com perfil de segurança aceitável quando bem monitorado. A implementação dessa terapia no SUS de São Paulo representa avanço importante, embora mereça continuidade em pesquisa para:
- definição de protocolos padronizados de dosagem;
- avaliação de impacto cognitivo e de longo prazo;
- investigação de formulações que contenham THC ou extratos completos da planta;
- monitoramento de segurança nos contextos reais de uso (farmácias especializadas, registro de eventos adversos etc.).