Artigo: O teatro da regulamentação

Publicada em 21/05/2019

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Foto: Cris Freitas

A Tragédia do Conselho Federal de Medicina e o obscurantismo científico no século 21

Depois de dois longos dias no fórum sobre maconha medicinal do Conselho Federal de Medicina, somado aos meus 5 anos de militância, ao convívio com cientistas, políticos, ativistas e pacientes, depois de estar presente em inúmeros espaços de disputas, confirmei o que eu já desconfiava – a resistência com a regulamentação do uso medicinal da cannabis é um grande teatro.

No teatro, a tragédia é uma forma dramática solene, cujo fim é excitar o terror ou a piedade, baseada no percurso e no destino do protagonista ou herói, que termina, quase sempre, envolvido num acontecimento funesto.

Qualquer semelhança não é mera coincidência!

Em 2014, quando eu ouvia essas mesmas falas de resistência que ouvi ontem no evento do Conselho Federal de Medicina, eu ficava confusa e desorganizada emocionalmente, porque para mim sempre foi muito claro que havia passado da hora de regulamentar a cannabis medicinal, mas agora vejo que sempre foi um jogo de cartas marcadas. Mas o que ainda me deixa triste é esse teatro de hipocrisia e falta de coragem de algumas pessoas, para assumirem publicamente, em alto e bom som, que eles são, sim, a favor do uso medicinal da cannabis. Muitos se escondem atrás de um “personagem”, falando que só acreditam nas moléculas isoladas do CBD, que são imprescindíveis os testes clínicos para a prova de segurança e eficácia da cannabis. Mas depois que terminam o teatro e descem do palco, nos cumprimentam e dão razão para todas as nossas colocações, que são totalmente contrárias às deles.

Sim, nesse teatro existe o “NÓS e ELES”!

Eles no palco do poder - políticos proibicionistas - e nós – pacientes - na plateia. Uma pena! Detalhe é que durante a encenação alguns até ficam bravos com as nossas falas e posições. Talvez não saibamos brincar direito e estejamos insistindo em trazer a realidade. Nesse teatro, a fala da proibição encerrou o fórum. Obvio, roteiro da peça era deles. Para encerrar, o palestrante trouxe uma conhecida parábola: “Os cegos sábios e o elefante”, na qual os cegos sábios são colocados diante de um elefante para dizer com que o animal gigante se parece. Cada um afirma a sua verdade absoluta, mas todos estavam enganados e a conclusão é trágica, como numa boa peça de teatro.

Ele começou a apresentação, dizendo que a maconha poderia ser boa ou ruim, dependendo do ângulo que se vê. Até acho que ele estava indo bem. Em seguida colocou a parábola dos cegos, dizendo verdades absolutas, mas equivocadas. Por alguns minutos me iludi, achando que ele estaria incluso como um desses cegos. Ledo engano! Ele enxerga! E o cego sou eu! Quanta prepotência...

O palestrante segue adaptando a parábola, para explicar a sua verdade absoluta, a de que a maconha será legalizada pelo interesse financeiro do George Soros ou pelo interesse político do Fernando Henrique Cardoso e do ex-senador Cristovam Buarque. Uma espécie de grande lobby de interesse social dos maconheiros e de um “pequeno” grupo de mães de crianças com epilepsia. E essas mães tratadas como uma massa de manobra de todas as mídias. Simples assim!

O palco é um lugar estratégico para marcar posições políticas, sobretudo quando se está no poder. Nós os pacientes da plateia, até tentamos trazer alguma realidade, mas não tivemos tempo para sequer fazer uma boa contraposição.

Mas trago por aqui a minha impressão!

A realidade é que enquanto esse teatro atrasa a regulamentação, nós, os pacientes e familiares de pacientes, estamos totalmente vulneráveis sem saber a quem recorrer, no meio de tanta burocracia, para importar os medicamentos caríssimos. Sem contar a falta de médicos que entendam do assunto. Muitos têm medo de prescrever, porque o CFM só o permite a 3 especialidades, psiquiatria, neurologia e neurocirurgia.

Ao contrário do que o palestrante disse no evento do Conselho Federal de Medicina, todos os avanços ocorridos nos últimos 5 anos na pauta medicinal no Brasil não tem nada a ver com o ex-presidente, George Soros ou qualquer outro capitalista, mas sim com famílias desesperadas que já não tinham alternativas e utilizavam a cannabis em seus filhos, sozinhas, sem acompanhamento médico, sem saber a dose, somente com a crença de que os filhos tivessem uma melhor qualidade de vida. E deu certo! Ou seja, as mães fizeram um trabalho que a ciência não quis ou não conseguiu fazer.

Quando iniciamos o uso medicinal, não havia médico nenhum no Brasil que arriscasse qualquer opinião sobre dose. A dose entre nós era um grãozinho de arroz. Não sabíamos efeitos colaterais, a interação medicamentosa, não sabíamos nada, apenas que outras crianças já usavam e o remédio funcionava. E isto era suficiente.

Essa realidade foi descoberta pelas mídias, primeiro graças ao trabalho de um jornalista chamado Tarso Araújo, que estava fazendo uma matéria para a super interessante, e depois com o documentário Ilegal,  que foi um divisor de águas. Esse assunto foi parar no programa da TV Globo Fantástico, ganhou o Brasil e aqui estamos nós.

É verdade que um assunto polêmico, como mães dando maconha para crianças, é fácil pautar na mídia. Sorte a nossa, pois assim o assunto cresceu e segue crescendo, aqui e mundo afora.

Os resultados são incontestáveis e nós não temos o tempo da ciência, mas se a ciência quiser confirmar o que estamos dizendo ela será bem-vinda, claro! É tudo o que queremos!

É verdade que hoje o capital está de olho nisso tudo. É verdade que há um mercado bilionário nascendo no entorno e certamente a legalização virá por aí. Não sei se isso é bom ou ruim, mas nos mitos e contos de fadas e até nos livros sagrados é comum a narrativa do mais fraco vencer o mais forte. É só uma questão de tempo.

Nós, os pacientes, estamos na barricada, porque a luta pela consciência e pelo esclarecimento é para sempre!

Margarete Santos de Brito é advogada e fundadora da Apepi, Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal. Ela é ativista da causa e mãe da sofia, paciente que usa o canabidiol para tratar epilepsia.