Julgamento que pode restringir o acesso de pacientes à cannabis medicinal é suspenso mais uma vez

Decisão do STJ pode reduzir a cobertura dos planos de saúde apenas aos procedimentos previstos na lista da Agência Nacional de Saúde (ANS)

Publicada em 23/02/2022

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Por Manuela Borges

Um grupo de mães e pais, de diversos estados do país, ocupou o gramado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em protesto ao julgamento que pode restringir o acesso de pacientes a uma série de procedimentos, exames e medicamentos, entre eles a cannabis medicinal, custeados atualmente pelos planos de saúde, mediante ações judiciais. 

Acorrentados uns aos outros, os manifestantes entoaram gritos de “o rol taxativo mata”. Atualmente, a interpretação é de que o rol de procedimentos definidos pela Agência Nacional de Saúde (ANS) é apenas exemplificativo, o que dá margem à judicialização de ações favoráveis aos pacientes. O conceito atual - por se tratar de um rol exemplificativo e não taxativo - abre brechas para que os planos de saúde sejam obrigados a cobrir procedimentos não elencados no rol da ANS por meio de ações judiciais. 

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Do lado oposto, os planos de saúde exigem do STJ uma mudança nessa interpretação. As operadoras de saúde querem que os procedimentos fiquem restritos ao que está expressamente determinado na lista da ANS, impedindo questionamentos judiciais. Hoje, o rol da ANS prevê cerca de 3.300 procedimentos de cobertura. Só que nos últimos 20 anos, o entendimento predominante da justiça é de que a lista de procedimentos serve apenas como referência mínima para a cobertura. Reflexo disso é o número de ações favoráveis aos beneficiários dos planos. Dados do Conselho Nacional de Justiça mostram que entre 2015 e 2020 mais de 2,5 milhões de processos relacionados à saúde acumulavam no judiciário brasileiro.

O julgamento, que pode reduzir a cobertura dos planos de saúde, teve início cinco meses atrás. Na ocasião, o relator, ministro do STJ Luis Felipe Salomão, votou pela interpretação do rol taxativo sob o argumento de que o modelo já é adotado em diversos países e que a ANS tem competência para definir o que deveria ou não ser obrigatório na cobertura das operadoras. O magistrado ainda defendeu rigor na definição dos procedimentos para que os próprios beneficiários sejam protegidos de possíveis aumentos abusivos. O ministro também questionou a pertinência dos procedimentos médicos e a avaliação dos impactos financeiros para o setor. Mas por outro lado, o relator reconheceu hipóteses excepcionais em que seria possível obrigar as operadoras de saúde a cobrir por procedimentos não previstos na lista.

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A retomada do julgamento começou com o voto da ministra Nancy Andrighi. A magistrada divergiu da fundamentação do relator, votou contra a taxatividade do rol imposto aos planos de saúde e questionou ao relator: “Se haverá exceções, porque deixar por escrito que o rol é taxativo? Se nós dissermos que o rol é taxativo muitas interpretações serão equivocadas. Se não haverá prejuízos para os pacientes, não há porque mudar a palavra”, concluiu a ministra Andrighi. O assunto que gerou polêmica entre os magistrados foi mais uma vez suspenso. O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva pediu vistas do processo culminando num pedido de vista coletivo. O julgamento não tem data para ser retomado.

Do lado de fora os manifestantes comemoraram aliviados, mas não tranquilos. Katiele Fisher, mãe da Anny, que participou recentemente de live deste portal e ficou famosa por protagonizar o documentário “Ilegal”, - sobre o acesso à cannabis medicinal e o tabu que ainda envolve o tema – fez questão de protestar! “O rol taxativo prejudica milhares de vidas! Esse julgamento vai afetar portadores de câncer, pacientes que necessitem de cirurgia, um exame mais sofisticado e também aqueles que fazem uso de canabidiol. É mais uma luta que essas pessoas vão precisar enfrentar. Isso é muito preocupante! O lucro vale muito menos do que uma vida”, desabafa a mulher que abriu as portas para a entrada da cannabis medicinal no Brasil em 2014.

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A advogada Samanta Mourão, que enfrentou 1.200 km de estrada do RJ à Brasília, com um bebê de colo, também está muito preocupa com o desfecho do julgamento. “Meu filho Rafael, de 7 anos, tem autismo severo. Antes da cannabis, ele era muito agressivo, se auto agredia a ponto de deformar o rosto. Hoje, está muito mais calmo, eu consigo sair de casa com ele, ele consegue socializar com outras crianças, ele já está até sendo alfabetizado, consegue sentar concentrar e desenhar! O tratamento do Rafael custa 3 mil reais por mês. Se o plano não pagar pelo medicamento, não temos como dar continuidade. O que eu mais tenho medo é que ele volte a se machucar”, relata a mãe angustiada.

Para o advogado Ricardo Piquet, especialista em judicialização de ações médicas, se a tese de rol taxativo for aceita, isso realmente vai dificultar o acesso à tratamentos, mas não vai impedir. Até porque, segundo ele, a tese que se desenha entre os magistrados na 2ª Seção do STJ é de rol taxativo cabendo exceções. “O magistrado deve continuar analisando o caso concreto para julgar com base na fundamentação de cada ação. Eu acredito que se o tribunal interpretar dessa forma, as liminares continuarão a ser deferidas a favor dos pacientes”, ameniza o especialista.