Neila Medeiros – a segunda reportagem do especial Dias das Mães

Publicada em 22/05/2019

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“Uma mãe que assiste a 90 convulsões diárias da filha adolescente com 17 anos, não sabe o que é paciência...”

“Uma mãe dessas não lida com os procedimentos estatais, burocráticos ou com meias soluções...”

 “E pergunto, que juiz culparia uma mãe amorosa, zelosa que vê a sua filha amada definhando numa cama e padecendo de dores atrozes e se sentindo mais infeliz do que a própria infelicidade”?

Essas três frases fortes fazem parte do despacho final do desembargador do Distrito Federal George Lopes Leite em uma decisão que permitiu que a família da jornalista Neila Medeiros pudesse cultivar a cannabis sativa em casa para fins medicinais.

Por conta do Habeas Corpus a filha de Neila, Júlia Medeiros, consegue ter hoje uma qualidade de vida muito superior à que tinha há até bem pouco tempo. Ela trata dores muito fortes e previne convulsões com o canabidiol. Júlia é portadora da síndrome de Silver-Russel. A parte cognitiva de adolescente de 18 anos é totalmente preservada, mas a motricidade do lado direito do corpo tem problemas, nos membros superior e inferior. Júlia tem contrações e espasmos musculares involuntários nos tendões, nervos e filamentos musculares longos do braço e da perna. Os do braço doem muito e machucam a mão. Ela já precisou fazer cirurgias corretivas na mão para aliviar o mal-estar constante e não comprometer movimentos finos que só a mão consegue produzir. “O maior problema da minha filha é sobretudo a dor. Como é possível ter paz sentindo dores fortes o tempo todo? A maconha medicinal rica em CBD diminuí muito os espasmos e principalmente alivia as dores”, conta Neila.

Julia entra na sala neste momento da conversa com a mãe dela. Era hora da terapia. Vaporização do CBD para o alívio das dores. Renan, o marido de Neila, prepara a dose. “Hoje para nós é bem mais fácil. Claro que esse conhecimento de botânica para produzir a planta é um percurso, mas eu gostei e aprendi. E hoje faço bem. Tenho várias espécies, cepas diferentes e todo um cuidado com o cultivo. A questão da luz, controle de pragas, relata o fotógrafo Renan Hackhadt Rêgo, casado com Neila há 6 anos e pai de Liz, a caçula da família, que ainda vai fazer um aninho.

Antes do cultivo em casa a família importava o canabidiol e pagava caro pelo remédio. Atualmente uma ampola apenas custa em torno de 300 dólares. Há dois anos, a família obteve da justiça a autorização para produzir o remédio de Júlia em casa.

Neila é a segunda personagem “mãe guerreira” deste especial do Sechat sobre o Dia das Mães. A jornalista é mãe de 3. A bebê de colo é um encanto. Cabelos dourados e olhos claros, sorridente para quem surge diante de seus olhos. É bem calminha. Durante a conversa de Neila e sua família com a reportagem do Sechat, a pequena Liz comeu, balbuciou, dormiu no colo aconchegante do pai, brincou no chão, tentou andar e sorriu muito para irmã – que na mesa de jantar, com todos sentados, fazia seu tratamento para relaxar a musculatura do braço direito.

Neila é uma cara muito conhecida em Brasília. 41 anos, é âncora do telejornal de maior alcance do SBT na audiência do DF. Ela já viralizou dezenas de vezes com intervenções em que defende a população junto aos governantes e instituições de poder. Sempre que está na rua é abordada por fãs e telespectadores que gostam do trabalho dela.

Neila é bonita e popular. Mais que isso. É uma mãe leoa, guerreira – que luta incessantemente pela felicidade das filhas. No caso de Júlia essa luta foi incessante. Na primeira infância a criança passava o dia em uma sonolência terrível por conta dos remédios depressores centrais que tomava para as convulsões. “Eu tinha que tomar dois comprimidos de rivotril (2mg) antes de ir para aula. Tenho essa memória. Era muito ruim. Sentia muito sono, e não conseguia prestar atenção em nada”, lembra Júlia

E assim foi o desenvolvimento de Julia, uma rotina de hospital, clínicas, muita fono, terapias ocupacionais, fisioterapias e drogas pesadas. Quando entrou na adolescência vieram os primeiros sinais de melancolia. E no auge dela, aos 16 anos um quadro depressivo. “Quando o desembargador esteve aqui em casa para conhecer a Júlia, antes do dar a liminar para o cultivo, ficou muito impressionado com o grau de melancolia dela. Uma depressão grave – mesmo com tantos remédios... Cena ruim...Ela não saiu do quarto escuro, me doía demais ver ela assim”, lembra Neila, um pouco emocionada.

O remédio da maconha foi uma virada para a vida de Júlia e da família. Atualmente, depois de 3 anos usando o derivado da cannabis, ela é outra jovem. Vai para a faculdade todos os dias onde estuda cinema. É uma garota feliz. Muita amada e bem cuidada. E levará consigo essa luta pela cura para o resto da vida. Uma história que marcou profundamente ela e a mãe.

Renan conta que a questão do cultivo traz ainda algumas dores de cabeça, por conta do preconceito e da desinformação no Brasil. “Enquanto o mundo lá fora caminha para a pesquisa e para a descriminalização dessa planta que cura e não destrói, aqui eu preciso contar e guardar as folhas secas que caem das mudas, porque a polícia vem aqui em casa e faz perguntas desse tipo” relata. Segundo Renan, no Habeas Corpus ficou definido que a polícia militar poderia ir na casa da família para fiscalizar o cultivo.

O fotógrafo e pai da pequena Liz, de quem não desgruda um minuto, tem um propósito em relação ao mundo canábico. “O que importa para nós é o acolhimento. O lado humano da história. Temos essa missão. Outro dia veio aqui em casa uma paciente que queria ver a Júlia. Ela sofre dores terríveis na coluna. Não posso ajudar porque a lei não me permite. Mas ela foi acolhida. Ouvimos ela. Falamos de nossa experiência. Ela viu tudo de perto. Viu a terapia da Júlia e demos uma indicação médica”, conclui Renan. “É tanta desinformação que as pessoas não sabem que a planta da maconha é cheirosa. Pensam que é aquela coisa preta prensada que se vende no mercado negro – diz Neila. “No futuro ele pretende ter uma associação. Quem sabe um dispensário”?, brinca a jornalista.

A Luta de Neila e Júlia é retratada no filme documentário Salvo Conduto. A narrativa trata do enfrentamento do arcaísmo das leis, e dos caminhos sinuosos da justiça para se ter acesso ao canabidiol, o remédio da maconha que serve para tratar os efeitos de uma doença grave que produz muita dor e sofrimento.

Atualmente, no Brasil cerca de 5 mil pessoas usam a medicação. E a única autorização judicial para cultivo em casa com fins terapêuticos do Distrito Federal é a de Neila e sua filha.

No documentário, o desembargador George Leite aparece lendo sua sentença do caso da família Medeiros. Com algumas folhas de papel em punho, óculos apoiados no nariz, George lê um texto comovente. “ Como deve ser o coração dessa mãe que enxerga apenas uma única medida, que funcione de fato, que é natural, que já é admitida em outros países e que está dentro de seu poder de ação?”