O cuidadoso caminho que deve tomar a ANVISA no setor da cannabis medicinal

ANVISA acertou em suas propostas de evolução da RDC 327, mas precisará de prudência para alterar a RDC 660

Publicada em 27/03/2025

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Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Foto: Lúcio Bernardo Jr/ Agência Brasília

Após um longo período em banho-maria, finalmente a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) começa a dar passos importantes na regulamentação da cannabis medicinal no Brasil. A última grande mudança no arcabouço regulatório ocorreu em 2019, quando a Agência aprovou a RDC 327, que regulamentou a criação de uma categoria específica de produtos à base de cannabis e estabeleceu diretrizes para sua produção, registro, dispensação e publicidade. Seis anos após essa mudança, a nova proposta regulatória surge por meio de uma consulta pública sobre a revisão da RDC 327.
 

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Joaquim Castro  
Sócio-fundador da Clínica Gravital, especializada em tratamentos à base de cannabis.

A reunião da Diretoria que aprovou a consulta pública deixou claro que a ANVISA ainda considera a RDC 327 como transitória. O sonho do regulador é que os produtos sejam registrados como medicamentos e não apenas na categoria criada de produtos à base de cannabis. 

Embora esses produtos atendam aos requisitos técnicos de fabricação, ainda carecem de evidências clínicas comprovadas por anos de estudos e milhões investidos. Almejar esse objetivo é o esperado de qualquer agência regulatória de saúde, mas existe um abismo entre o sonho e a realidade.

 Estrategicamente, é prudente que a agência externalize publicamente sua visão de transitoriedade da categoria, ao mesmo tempo em que oferece mais tempo para os fabricantes realizarem os estudos necessários para cruzar a ponte entre um simples produto à base de cannabis e um medicamento. Essa é uma solução salomônica que mantém o acesso das famílias aos produtos já disponíveis no país.

As propostas de alteração do acesso ao mercado de cannabis no Brasil são várias, e vamos a elas a seguir:


- Simplificação da dispensação: A decisão sensata de facilitar a dispensação de produtos com menos de 0,2% de delta-9-tetrahidrocanabinol para um Receituário de Controle Especial (RCE), em vez do modelo anterior, é um avanço. O regulador - que frequentemente prefere pecar pelo excesso de zelo - corrige a incluiu feita em 2019: uma exigência que já não fazia sentido. 

Com a possibilidade de o RCE ser digital, há um potencial para que os negócios de delivery de produtos à base de cannabis ganhem corpo, facilitando a vida de famílias e médicos.

- Autorização de importação para fins de pesquisa e desenvolvimento: Essa alteração é tão acertada que dispensa comentários adicionais.

- Certificado de Boas Práticas de Fabricação (CBPF): Até agora, a ANVISA aceitava de forma provisória que laboratórios estrangeiros tivessem o CBPF concedido por autoridades de outros países. Agora, a ANVISA certificará esses laboratórios, o que é coerente com suas diretrizes. Todos os laboratórios conheciam essa exigência, e é natural que agora estejam em conformidade. Eles já ganharam um prazo extra de 10 anos para transformar seus produtos à base de cannabis em medicamentos, mas ficar sem o CBPF é inaceitável.

- Ampliação das vias de administração: Expandir as vias de administração de produtos, além dos óleos, é um grande acerto do regulador. Grande surpresa a via de administração inalatória ainda é pouco vista no mundo da cannabis. Não se referem a vaporizadores eletrônicos, mas sim, por exemplo, ao inalador dosimetrado (MDIs) que entrega com precisão a quantidade das moléculas. Todas as vias, com exceção da inalatória, já atendem milhares de pacientes pela RDC 660, com grande aceitação entre médicos e pacientes. 

Vale destacar que a RDC 660 cumpre e sempre cumprirá um papel desbravador, permitindo que médicos e pacientes tenham acesso a um amplo arsenal terapêutico de produtos de cannabis disponíveis mundialmente. Foi graças às versões iniciais da 660 (RDC 17 de 2015) que quatro anos depois surgiu a RDC 327.

- Manipulação em farmácias magistrais: A ANVISA apresentou uma excelente explicação ao indicar por que permitirá que farmácias magistrais com Autorização Especial (AE) manipulem o fitofármaco CBD em suas dependências, ou seja, CBD isolado, mas não permitirá produtos full spectrum, que são de manejo farmacêutico muito mais complexo. Embora ainda seja difícil estimar o impacto no mercado, essa flexibilização representa um avanço.

- Publicidade de produtos de cannabis: Liberar que laboratórios possam fornecer amplamente detalhes sobre seus produtos aos médicos deveria ser uma obrigação das empresas, não apenas um direito.

De modo geral, todas essas alterações são muito bem-vindas. A regulamentação avança lentamente, mas avança. Contudo, essas mudanças eram, de certa forma, esperadas. 

 

Possível alteração na 660

 

A surpresa foi o destaque dado à RDC 660 no voto do relator. Parece que podemos esperar mudanças significativas na via de acesso por importação. O quanto essas alterações serão bem recebidas pela comunidade médica e pelos pacientes, que são os verdadeiros beneficiários dos produtos à base de cannabis, é um ponto a ser discutido e exigirá responsabilidade da ANVISA. 

Qualquer conclusão feita neste momento é mera conjectura, dado que não há uma proposta concreta de alteração na 660, mas parece evidente que a barra deste normativo finalmente vai subir. Essa movimentação é bem-vinda.

O excesso de liberdade do mercado da 660 certamente traz problemas administrativos para a ANVISA. Afinal, são dezenas, talvez centenas, de marcas aprovadas para importação. Hoje, as aprovações de importação são genéricas, concedidas para a marca como um todo, e não há uma avaliação de cada produto nem requisitos mínimos de qualidade. 

Negócios baseados na RDC 660 florescem com consultas fictícias a um custo de R$ 30 e outras igualmente a preços vis por aplicativos de mensagem, onde médico e paciente nem se veem. Essas plataformas ameaçam seriamente o futuro da medicina endocanabinoide no Brasil, tudo para vender o produto via 660. 

A ANVISA não está cega a essa tendência e há uma grande oportunidade de melhoria regulatória, embora regular a atividade médica seja responsabilidade do Conselho Federal de Medicina e não da ANVISA.

É fundamental ressaltar que a atual 660 representa um empoderamento de um acordo privado entre o paciente e seu médico, retirando, assim, a tentativa de o Estado tutelar essa relação. Essa visão de não necessidade de uma ação tutelar do Estado é acertadíssima. 

De um lado, pela 327, o acesso aos produtos de cannabis pode ser feito diretamente nas farmácias e tem controle estatal e restrições naturais relativas a esse fato; do outro, há o reconhecimento de que médicos e pacientes não são hipossuficientes na escolha da melhor alternativa para a saúde.

Se a ANVISA alterar esse pilar, mexerá em algo que já está funcionando. Atualmente, mais de 400 mil pacientes utilizam produtos importados, e não há evidências de que isso tenha gerado uma questão estrutural de saúde pública.

No entanto, isso não significa que o regulador deva se omitir de tomar ações pontuais visando simplificar seu trabalho de fiscalização, elevar a qualidade dos produtos que podem entrar no Brasil e, ao mesmo tempo, manter a oportunidade de acesso a produtos disponíveis em outros mercados, em diversas vias de administração e formulações. Esse binômio de autonomia entre médico e paciente, juntamente com o acesso a um arsenal terapêutico internacional completo, é a principal virtude da 660.

 

Alternativas para a mudança


Uma medida simples seria o regulador realizar uma diligência mais rigorosa nos laboratórios, exigindo certificações ou licenças normalmente requeridas para produtos de cannabis produzidos sob padrões farmacêuticos.

O mesmo princípio de equilíbrio que levou a ANVISA a conceder mais prazo para que os produtos à base de cannabis se tornem medicamentos deve ser aplicado na revisão da 660. 

O princípio administrativo da proporcionalidade também será invocado nessa revisão. Esse princípio exige que as medidas públicas sejam adequadas e proporcionais aos fins desejados. Se a preocupação é com a qualidade dos produtos e não em barrar o acesso a produtos inovadores pelos pacientes, a barra da qualidade deve ser elevada, mas mantendo a possibilidade de acesso.

Teremos grandes mudanças pela frente no mercado da cannabis de uso medicinal no Brasil. Aguardamos novidades,  já que o prazo dado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) para a ANVISA regulamentar o cultivo para fins medicinais, com padrões farmacêuticos, se encerra em maio. Isso representará mais uma grande movimentação na regulação da cannabis medicinal no Brasil.

Por fim, é fundamental que o setor, especialmente os players que atuam sob a RDC 660, unam-se urgentemente às iniciativas associativas já existentes, a fim de auxiliar no debate que teremos pela frente. A omissão poderá custar caro. É hora de agir e colaborar para que a regulamentação da cannabis medicinal no Brasil avance de forma responsável e eficaz.

 

Joaquim Castro
Sócio-fundador da Clínica Gravital, especializada em tratamentos à base de cannabis.

Nota: A opinião de Joaquim Castro não reflete necessariamente o posicionamento da Sechat.