Por que evidências da vida real é aceno da ciência para cannabis de uso medicinal

Evidências de vida real ou real world data, (RWD), são informações coletadas fora de um contexto típico de pesquisa clínica

Publicada em 08/03/2023

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Por Maria José Delgado Fagundes

Talvez seja uma ironia, mas, a pandemia Covid-19 abriu as portas das agências regulatórias para outras alternativas de pesquisas clínicas no mundo. Fez emergir  novas aprovações que consideram outros parâmetros, para além dos clássicos e tradicionais ensaios duplo-cego, randomizados e controlados por placebo. Nesse artigo, estou me referindo às evidências de vida real ou real world dataRWD.

Apesar de não ser uma novidade, a RWD ganhou tração por razões que vêm se aglutinando, principalmente desde o fim da década de 1990, catalisadas com a pandemia da Covid-19. Vacinas e medicamentos contra o coronavírus foram indicados também com base nessa estratégia.

A Sociedade Internacional de Farmacoeconomia e Estudos de Desfecho (ISPOR, na sigla em inglês), uma referência global em economia de saúde, constatou que para o biênio de 2022 e 2023, o primeiro lugar ficou com as chamadas evidências de vida real – elas superaram tópicos como equidade na saúde, engajamento do paciente e precificação de medicamentos.

A própria definição dessa expressão que está na moda, segue em debate. De maneira ampla, as evidências de vida real (ou real world dataRWD) são as informações coletadas fora de um contexto típico de pesquisa clínica. As fontes são incontáveis: aplicativos de celular, relógios inteligentes, bancos de dados hospitalares, prontuários eletrônicos, painéis genéticos, registros de seguradoras de saúde, sistemas informatizados de farmácia, sistemas públicos (como o DATASUS), dados de faturamento, mídias sociais e por aí vai.

Em janeiro de 2023 um artigo publicado na Nature Medicine, destaca: “É importante distinguir o RWD, que se refere a dados gerados da rotina e do atendimento padrão dos pacientes, da evidência de vida real [real world evidenceRWE]”. Podemos entender que as evidências de vida real são geradas a partir das análises sistematizadas dos dados de vida real, servem  de insumo para diversas tomadas de decisão – adoção de políticas públicas pelo governo, aprovação de medicamentos e mudanças de bula por agências regulatórias, negociação de preço junto às operadoras e ao SUS.

Pensando em dados, fica claro que é a tecnologia que ancora as evidências de vida real. Segundo estimativa do oncologista Stephen Stefani, “há cerca de 15 anos, só 5% dos dados de saúde eram digitalizados. Hoje, esse número está na casa dos 95%”.

Em resumo, há quantidade de dados disponíveis em maior ou menor grau para interpretação, o que é fundamental para análises que visam enxergar a vida como ela é.

A medicina avança de forma acelerada e com isso, uma nova demanda para o financiamento da saúde se apresenta.  Mas qual é a conexão entre custo e as evidências de vida real? A resposta fica clara pois os recursos são finitos e as novas tecnologias, naturalmente, aumentam as despesas, assim os planos de saúde, as agências reguladoras e outros atores do segmento passaram a questionar, principalmente, o custo-benefício de certos tratamentos na tentativa de conter a incorporação de tantos procedimentos dispendiosos.

Se por um lado temos o despertar da sociedade para os direitos à saúde, colhemos também a reflexão  do setor, no sentido de que é necessário fazer emergir e ampliar os benefícios das razões catalisadas no contexto pandêmico, quando foi necessário utilizar medicamentos e vacinas  indicados com base nas evidências da vida real para  conter a catástrofe a qual enfrentamos.

Pois bem!

Se foi possível em um momento de grande vulnerabilidade social e de saúde, utilizar as evidências da vida real, é necessário entender como podemos legitimar essa modalidade, mesmo ainda não dispondo de um arcabouço regulatório totalmente estabelecido.

Conforme observam alguns especialistas, há ausência de padrões globais para a utilização das evidências de vida real. Entretanto, isso não significa dizer que elas não sejam usadas, inclusive no Brasil. O que se observa é que cada instituição, de acordo com sua capacidade de infraestrutura e conhecimento, adota critérios diferentes e possíveis, portanto acabamos chegando em resultados individuais – o famoso caso a caso.

Na minha avaliação, uma excelente oportunidade de capilarização dessa modalidade para se juntar às alternativas de estudos, é olharmos com atenção as articulações em curso, de  organizações como o Conselho Internacional de Harmonização de Requisitos Técnicos para Produtos Farmacêuticos de Uso Humano (ICH, como é conhecido), onde a Anvisa é membro, juntamente com outras  autoridades regulatórias e a indústria farmacêutica. Esses esforços visam discutir aspectos científicos e técnicos do desenvolvimento e registro de produtos farmacêuticos e já está em desenvolvimento um guia que trará pontos-chave sobre a segurança e a confiabilidade dos dados de vida real. O projeto também almeja incluir métodos para coletar de maneira mais uniforme e segura determinado tipo de informações.

O atual cenário regulatório da Cannabis de uso medicinal aponta para a conclusão da revisão da RDC 327/2019 em 2023, onde as atuais discussões levam a crer que no novo texto regulatório haverá a necessidade de avançarmos para o registro como medicamentos para essa opção terapêutica. Isso significa que deverá haver investimentos vultosos para esse mercado promissor, nem sempre disponível pelo atual setor produtivo ou importador e, o mais grave, o acesso aos tratamentos com excelentes resultados de milhões de pacientes ficarão comprometidos ou engrossarão o caldo da judicialização.  Isso não é bom para os gestores e muito menos para a sociedade civil.

Diante desse possível cenário, talvez o mais sensato fosse ampliar a discussão e o amadurecimento da utilização das evidências de vida real, que abrem oportunidades para abordagens mais eficientes para as indicações, podendo apresentar dados até mais claros e eficientes para a cannabis de uso medicinal.

Várias publicações apontam que essa modalidade revela melhorias de saúde, na qualidade de vida ao usar o produto e, no case da cannabis de uso medicinal, isso manteria distante as incontáveis discussões, até ideológicas, em relação à falta de benefícios reais e significativos. 

Essa estratégia poderá trazer ainda indicadores econômicos importantes como: ganho de produtividade com o uso da cannabis, redução de acesso aos serviços de saúde, perdas financeiras do Estado com processos judiciais, seja na assistência à saúde, farmacêutica e nas despesas do judiciário, em ações movidas por pacientes para conseguir acesso aos tratamentos. Uma vez que eles não estão disponíveis pelas vias tradicionais de acesso (público ou privado).

Vivemos em um momento muito favorável para a ampliação célere dos eixos relacionados à cannabis de uso medicinal.  Nesse sentido, deixo aqui minha preocupação em relação à relevância da ciência. É imperativo superar as ideias preconcebidas, para ter um olhar sobre esse e outros temas da planta sem os pressupostos negativos ou positivos. Só  assim será possível abrir espaço para que sejam ampliadas as evidências científicas e que a tomada de decisão seja embasada em fatos, tanto nas emergências graves de saúde pública, a exemplo da Covid-19, como em propostas que quebrem preconceitos, propiciando àqueles que precisam da planta, a garantia de acesso, a um menor custo e com as garantias sanitárias e da ciência.

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e de responsabilidade de seus autores.

Maria José Delgado Fagundes é CEO na MJDFagundesconsultoria, advogada, profissional  na área de compliance, consultora especializada em saúde, sistemas regulatórios, setor  farmacêutico e associações de suporte a pacientes.