Cannabis Medicinal e a Doença de Alzheimer

Quando falamos de Alzheimer, os canabinoides, incluindo o THC, ainda tão demonizado no Brasil, podem ajudar a proteger e estimular a formação de novos neurônios no cérebro, melhorando ainda o humor, o apetite e o sono. Por que o tratamento ainda é tã

Publicada em 23/05/2022

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Por Mara Gabrilli

Um homem recusa toda a ajuda de sua filha à medida que envelhece. Ele começa a duvidar dos entes queridos, de sua própria mente e de sua realidade ao tentar compreender as mudanças que estão acontecendo em sua vida.

Essa é a sinopse do filme 'Meu Pai', protagonizado por Anthony Hopkins, que nas telas escancara as angústias causadas pela demência do Alzheimer, doença degenerativa e progressiva que afeta idosos e provoca atrofia no cérebro.

Além de apagões na memória, na esteira da doença estão os mais diversos sintomas, como a desorientação, as mudanças no humor, o desinteresse por atividades habituais, sem contar dos problemas na fala e na coordenação. 

A verdade é que quando se sofre de Alzheimer não se perde apenas lembranças, mas muita qualidade de vida. E quando não há apoio, adoecem paciente e uma família toda. E esse entorno também precisa ser alvo de políticas públicas. Falamos de filhos, esposas, netos, irmãos. Quando se beneficia uma pessoa com Alzheimer, se abraça uma família. Mas o contrário também pode ocorrer.

"Meu pai foi diagnosticado com Alzheimer muito novo, com apenas 52 anos. Ficamos em choque e a doença avançou muito rápido. Os sintomas eram os piores possíveis e lembro que um dia ele chegou a nos agredir e tentou até enforcar minha mãe. Ele parecia não ter mais 'alma', ficava com um olhar vago e precisava de ajuda para tudo".

Esse é o relato de Felipe Suzin, filho de Ivo, um senhor com Alzheimer que começou a se tratar com a cannabis medicinal em 2019. Os resultados são relatados pela própria família, que ganhou na Justiça o direito de plantar a cannabis para fins medicinais. 

Quem acompanha a família nas redes sociais sabe o quão emocionante é assistir o senhor Ivo dançando, sereno, novamente com brilho nos olhos. Ouvir Felipe falar sobre o pai enche de esperança o coração daqueles que acreditam no potencial da cannabis medicinal no tratamento de doenças debilitantes. 

"Hoje, mesmo não sabendo meu nome, fica bem mais calmo, sorridente e chega até a me abraçar e beijar", conta Felipe, que transformou a luta individual de sua família, numa causa coletiva. Hoje, a Associação Curando Ivo atua orientando outras famílias a conseguirem o direito de se tratar com a cannabis medicinal. Demanda não falta. 

Só no Brasil, cerca de 1 milhão de brasileiros sofrem de demência – a maioria deles tem a doença de Alzheimer. Para se ter uma ideia, há 30 anos, eram 500 mil idosos com a doença. Daqui a 30 anos, o cenário é ainda mais assustador: serão 4 milhões. 

Os números fazem parte da conclusão de um estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pela Universidade de Queensland, da Austrália

O trabalho, publicado no ano passado na Revista Brasileira de Epidemiologia, nos mostra um contingente de pessoas que poderiam se beneficiar com a regulamentação da cannabis medicinal em todo o país.

Estudos in vitro e in vivo demonstram que os canabinoides podem combater características da doença como a neuroinflamação, envolvida na progressão da doença, além do estresse oxidativo, que é um acelerador do processo de envelhecimento.

Não por acaso, houve um crescente interesse nas utilizações medicinais dos canabinoides para tratar doenças comuns em pessoas idosas. A literatura médica tem estudado a relação do sistema endocanabinoide ao Alzheimer, com estudos que mostram que o gerenciamento desse sistema pode dar indícios para uma nova abordagem farmacológica para o tratamento da doença. 

Os canabinoides, incluindo o THC, ainda tão demonizado no Brasil, podem ajudar a proteger e estimular a formação de novos neurônios no cérebro, melhorando ainda o humor, o apetite e o sono. 

É claro que a ideia aqui não é vender a cura do Alzheimer por meio da cannabis, até porque a ciência é um campo que está sempre em construção e falamos de uma patologia ainda sem cura na medicina. Mas garantir que os pacientes e suas famílias possam ter escolhas de tratamentos alternativos permite novas perspectivas. 

Subtrair das pessoas o direito de vislumbrar novos caminhos de tratamento é o mesmo que negar a elas o direito de escolha, o direito de ser feliz.

Alegar que regulamentar a cannabis medicinal é um incentivo ao tráfico de drogas é um argumento chulo. É o retrato da hipocrisia de quem jamais precisou olhar nos olhos de seu pai ou mãe com Alzheimer e não conseguir mais reconhecê-los. 

Esse é o sentimento das famílias que convivem com o Alzheimer e não encontram meios de atenuar a progressão da doença e seus impactos, inclusive os de ordem financeira, porque é preciso lembrar também que no Brasil não há política de cuidados. Filhos, esposas, netos... abnegam suas vidas para cuidar do familiar com Alzheimer. Falamos de uma maioria que não conta com um plano de saúde e necessita de cuidados para atividades de vida diária, como comer, tomar banho e se medicar. 

Necessidades tão urgentes assim, num país onde o acesso à saúde ainda está condicionado aos mais abastados, não podem ser negligenciadas. Não podemos simplesmente fechar as portas para a regulamentação da cannabis medicinal, que pode sim ser uma alternativa economicamente viável para milhares de brasileiros que merecem concluir sua trajetória de vida com o mínimo de dignidade.

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e de responsabilidade de seus autores.

Sobre a autora:

Mara Gabrilli é senadora da República pelo estado de São Paulo, representante do Brasil no Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e fundadora do Instituto Mara Gabrilli.