
Pedido de vista na RDC 327 foi providencial. Leia a coluna de Tarso Araujo
Principais mudanças em relação à minuta apresentada para consulta pública são prejudiciais para os pacientes
Publicado em 10/12/2025Ainda bem que não passou. A aprovação dessa nova proposta de RDC 327 seria uma vitória retumbante da indústria farmacêutica nacional. O que seria ótimo, se isso não acontecesse em detrimento dos pacientes que precisam – ou que podem precisar – de Cannabis para fins medicinais.
A minuta que foi enviada para votação não é a mesma que foi apresentada em março para consulta pública. As alterações foram importantes e as principais delas servem para minar a concorrência dos fabricantes nacionais. Um artigo da minuta apresentada propõe vedar a manipulação de qualquer canabinoide por farmácias magistrais e outro, quase de rodapé, dá um prazo de 12 meses para limitar a importação de produtos via RDC 660 – demanda formalmente apresentada à Anvisa pelo Sindicato das Indústrias Farmacêuticas.
Acontece que essas medidas não são boas para o cidadão brasileiro
A manipulação de canabinoides é importante para pacientes que precisam de formulações customizadas e mesmo para quem precisa dos produtos típicos, ela é mais uma opção de oferta. O argumento de que elas não têm como garantir segurança, padronização ou qualidade simplesmente não para de pé. Farmácias magistrais manipulam e dispensam todo tipo de produto controlado, como antibióticos, ansiolíticos e antidepressivos de tarja preta e opioides e estimulantes que requerem receita amarela, a mais restritiva de todas. Porque não poderiam fazer o mesmo com o canabidiol, que a própria minuta propõe dispensar com receita branca? Não há no processo regulatório uma justificativa técnica clara para proibir a manipulação de canabinoides.
Já o fim da RDC 660 é tudo que a indústria precisa para manter o preço do CBD alto na farmácia. A partir de 2015, a importação de produtos derivados de Cannabis sem registro no Brasil assegurou aos brasileiros o acesso a esse tipo de tratamento quando a indústria nacional achava o mercado muito pequeno para valer a pena. Durante cerca de sete anos, os fabricantes apenas observaram. Agora, com uma normativa clara e a demanda estabelecida, ela decidiu jogar o jogo, mas não consegue vencer na bola.
Desde o ano passado, o crescimento da sua participação no mercado perde força, porque, ao contrário do que o Sindusfarma alegou em ofício à Anvisa, os importados são mais baratos. Logo, para crescer, a indústria precisaria reduzir suas margens de lucro e reduzir o preço na prateleira. Ou usar a revisão da RDC 327 para atrapalhar a concorrência. Quer dizer, sem a RDC 660, a indústria não terá qualquer incentivo para reduzir o custo dos produtos, inclusive quando a escala aumentar. Quem sai perdendo são os pacientes.
O mecanismo lembra a velha estratégia de substituição de importações, política econômica usada pelo Estado brasileiro nos anos 1930 e durante a ditadura militar para incentivar o desenvolvimento de setores da indústria nacional pouco desenvolvidos, sem condições de concorrer com seus pares internacionais.
Acontece que a Anvisa não tem o papel de proteger a indústria nacional. Sua missão é sanitária. E, sob esse ponto de vista, a Agência não tem qualquer responsabilidade sobre os produtos da RDC 660. A própria resolução estabelece que ela é do paciente e do médico. Ponto final. Restrições a esse mecanismo de acesso poderiam inclusive ser interpretadas como uma tentativa de interferência no mercado.
E o setor farmacêutico brasileiro não é uma indústria incipiente, que precise desse tipo de apoio. Muito pelo contrário: é um verdadeiro colosso, com dezenas de bilhões de reais de faturamento anual. Tem força de vendas, comunicação com médicos e poder de investimento suficientes para se desenvolver no mercado a despeito da existência de outros canais de oferta.
A indústria tem um papel fundamental na democratização do acesso aos produtos de Cannabis no Brasil. E vai desempenhar melhor esse papel enquanto conviver com produtos importados, magistrais e – não vamos esquecer – de associações de pacientes.
Portanto, foi providencial o pedido de vistas do diretor Thiago Lopes Cardoso Campos, recentemente empossado. Agora vamos torcer para que a nova diretoria da Anvisa repense esses artigos da RDC que, na prática, criam uma reserva de mercado para a indústria. E que possa produzir uma minuta de Resolução mais alinhada com o interesse público.
Já em relação à indústria farmacêutica brasileira, a torcida é para que ela mostre, na prática, sua capacidade de produzir com qualidade, eficiência e preço baixo. E, quem sabe até consiga, um dia, demonstrar a eficácia dos produtos para os quais demanda tantos privilégios.
A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a linha editorial da Sechat.

Tarso Araujo é jornalista, colunista do portal Sechat, documentarista e consultor de negócios de cannabis e psicodélicos. É codiretor de “Ilegal – a Vida Não Espera”, documentário que trouxe o debate sobre cannabis medicinal para a imprensa brasileira, e autor dos livros “Almanaque das Drogas - um Guia Informal para o Debate Racional”, (Leya, 2012) e “Guia sobre Drogas para Jornalistas” (Catalize, 2017). Atualmente, é consultor do Instituto Ficus, ONG de advocacy sobre Cannabis e psicodélicos, e sócio da Navega, clínica de cetamina para depressão refratária, além de diretor da Catalize Lab, produtora de comunicação e impacto social.
