O potencial dos canabinoides no tratamento do autismo
Publicada em 29/08/2019
Artigo escrito na plataforma PebMed por Filipe Fernandes, médico psiquiatra e residente de Psiquiatria da Infância e Adolescência no Centro Psíquico da Adolescência e da Infância (CEPAI/Fhemig). Atua no atendimento de crianças, adolescentes e adultos na cidade de Belo Horizonte (MG).
Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) é o nome que se dá a uma forma de neurodesenvolvimento atípico, caracterizado pela manifestação precoce de dificuldades de comunicação e interação social e pela presença de comportamentos e/ou interesses repetitivos ou restritos. Esses são os sintomas nucleares do transtorno, mas a forma e gravidade de sua apresentação são variáveis. Trata-se de um transtorno pervasivo e permanente, não havendo cura, ainda que a intervenção multidisciplinar precoce focada em hiperestimulação (comportamental e educacional) possa alterar o prognóstico, melhorando a funcionalidade e qualidade de vida do paciente.
O tratamento farmacológico possui indicação formal apenas para quadros de importante irritabilidade ou agressividade, onde o paciente coloca a si ou terceiros em risco. Também pode ser indicado no tratamento de condições comórbidas, sendo os distúrbios do sono e o déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) as mais comuns.
Canabinoides para tratamento de Transtorno do Espectro do Autismo
O uso de canabinoides – especialmente o canabidiol (CBD) – tem sido cada vez mais frequente no tratamento de crianças com epilepsia refratária aos tratamentos convencionais e outras patologias, inclusive no Brasil. Depois de diversos relatos sobre o uso de cannabis medicinal na diminuição, por exemplo, de ansiedade, irritabilidade, insônia e agressividade, pais de crianças com autismo começaram a enxergar o uso de canabinoides como uma alternativa para aliviar tais sintomas em seus filhos.
Desde então, vêm se acumulando ao redor do mundo muitos relatos de casos evidenciando melhora substancial do comportamento, funcionalidade e qualidade de vida em pacientes com TEA após iniciar tratamento com cannabis medicinal. Além de curiosidade sobre a possibilidade desse uso influenciar também na melhora dos sintomas centrais da doença. Embora muitos portadores de autismo já estarem sendo tratados com preparados à base de CBD, há ainda grande desconhecimento acerca das evidências científicas e análises de perfil de segurança, tolerabilidade e eficácia para o uso em pacientes com TEA.
Estudo da Elsevier
Recente estudo de Poleg et al (2018), intitulado “Canabidiol como um candidato sugerido para o tratamento do Transtorno do Espectro do Autismo”, foi veiculado pela Elsevier. O CBD não tem efeito psicotrópico (não “dá barato”, não provoca alterações de percepção ou de humor), não causa dependência e tem baixa toxicidade.
O artigo avaliou estudos pré-clínicos e clínicos em busca de achados sobre o envolvimento do sistema endocanabinoide em neurodesenvolvimento e desordens físicas e mentais, bem como sobre segurança e eficácia do uso de CBD no tratamento de comportamentos e comorbidades mais comuns do portador de TEA. O trabalho concluiu que os déficits de interação social fazem parte dos principais fenótipos do TEA, e que o CBD tem demonstrado algumas propriedades pró-sociais em estudos pré-clínicos.
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Além disso, demonstrou que é possível que o canabidiol possa ser eficaz como monoterapia ou tratamento adjuvante em algumas das comorbidades mais comuns do portador de autismo, como distúrbios do sono, TDAH, ansiedade e convulsões. O nível de evidência ainda é muito baixo com relação aos efeitos em outras comorbidades, tais como psicose, comportamento aditivo, distúrbios cognitivos ou do humor e agressividade.
O estudo ainda conclui que há certamente uma grande lacuna sobre o tema e muitos outros estudos são necessários antes de se afirmar quaisquer conclusões sobre o potencial terapêutico do uso dos canabinoides em pacientes com TEA. Destacou-se que todas as evidências atuais são indiretas e com base na eficácia do CBD em condições patológicas que poderiam estar também presentes no autismo. Portanto, a eficácia potencial do CBD no contexto da TEA é ainda uma hipótese.
Estudo da Revista Nature
Mais recentemente, a conceituada revista científica Nature (cujo fator de impacto é altamente relevante) divulgou o artigo “Experiência da vida real no tratamento do autismo com cannabis medicinal: análise da segurança e eficácia”. Neste estudo foram coletados e analisados dados de 188 pacientes com TEA tratados com cannabis medicinal entre os anos de 2015 e 2017 – o grupo tinha média de idade de 12,9 anos e alguns pacientes apresentavam comorbidades associadas, sendo epilepsia (14,4%) e TDAH (3,7%) as mais prevalentes.
Na maioria dos pacientes, o tratamento foi baseado no uso de óleo de cannabis contendo 30% de CBD e 1,5% de THC (proporção de 20 CBD para 1 THC). Os dados foram coletados através de questionários estruturados aplicados aos cuidadores, contendo inventário de sintomas, avaliação global e efeitos colaterais. A coleta foi realizada em três momentos distintos (antes do início do tratamento, um mês após o início e seis meses após o início).
Concluiu-se que, depois de seis meses de tratamento, 30,1% dos pacientes relataram melhora significativa dos sintomas; 53,7% relataram resposta moderada; 6,4% relataram melhora discreta; e 8,6% não relataram melhora alguma. Ademais, melhora ou desaparecimento de sintomas como inquietação, ataques de raiva, agitação, problemas do sono, ansiedade, constipação e problemas na digestão foram relatado em 75% dos pacientes ou mais. A mesma eficácia não foi observada na melhora ou desaparecimento de distúrbios da fala, déficits cognitivos, incontinência, mobilidade limitada, apetite aumentado e falta de apetite.
Efeitos colaterais foram observados por 25,2% dos pacientes, sendo inquietação (6,6%) o mais comum. É importante salientar que este foi um estudo realizado sem grupo controle e, portanto, nenhuma causalidade entre a terapia com canabinoides e melhora no bem-estar pode ser estabelecida. O estudo foi baseado em relatos de observação fornecidos pelos pais/cuidadores, além da avaliação ser composta de variáveis subjetivas, como qualidade de vida, humor e efeitos gerais – fatores que podem ser influenciados pela opinião dos pais/cuidadores.
Segurança do uso da cannabis medicinal
Relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) destacou que o CBD tem um bom perfil de segurança. E os estudos aqui mencionados sugeriram que o tratamento com cannabis medicinal é seguro e pode melhorar os sintomas comportamentais, funcionalidade e qualidade de vida do paciente com TEA. Apesar disso, é importante evidenciar que ensaios clínicos controlados e estudos duplo cego são cruciais para uma melhor compreensão da eficácia, tolerabilidade e segurança para o uso medicinal de canabinoides no tratamento dos pacientes com autismo. Porém, na medida em que vem aumentando o interesse pelo tema e surgindo novas evidências ao redor do mundo, há uma tendência ao aumento nas prescrições – o que já é praticado por alguns profissionais de forma off-label.
Situação no Brasil
No Brasil, a importação de produtos à base de CBD e THC – substâncias presentes na planta da cannabis e que atualmente são as mais estudadas em pesquisas de saúde – foi regulamentada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) por meio da RDC 17/2015. Para importar o produto, é necessário uma autorização prévia da agência, mediante apresentação de prescrição, relatório médico e termo de consentimento.
Atualmente, há duas consultas públicas em aberto, propostas pela própria Anvisa: a Consulta Pública 654/2019 aborda os procedimentos para o registro e monitoramento de medicamentos produzidos à base de Cannabis spp., seus derivados e análogos sintéticos. Enquanto a Consulta Pública 655/2019 trata dos requisitos técnicos e administrativos para o cultivo da planta por empresas farmacêuticas, única e exclusivamente para fins medicinais e científicos.