Da frustração à motivação

Em artigo, o colunista Ricardo Ferreira contextualiza sob o ponto de vista humano, a busca dos pacientes para o alívio da dor a partir de sua experiência técnica e científica

Publicada em 03/12/2020

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Coluna de Ricardo Ferreira*

Ao longo de mais de 20 anos de carreira estudando e atuando como cirurgião de coluna e manejo da dor, apesar de já ter ajudado a minimizar muito sofrimento de muitos, também fui acumulando toneladas de frustrações. Essas frustrações são frutos diretos da minha incapacidade de corresponder às expectativas a uma boa parcela dos meus pacientes.

Essas frustrações são frutos diretos da minha incapacidade de corresponder às expectativas a uma boa parcela dos meus pacientes

Estes pacientes são chamados pela medicina como portadores de dores crônicas refratárias. Ao receber o rótulo de dor refratária não significa que esta dor não tenha mais solução, mas, sim, que as opções terapêuticas já consagradas não foram capazes de ajudar de forma satisfatória.

Um exemplo disso é a AIDS, antes do coquetel antirretroviral, esta doença era considerada refratária. Após a entrada destes novos medicamentos a doença passou a ser administrável, apesar da sua cura ainda não estar disponível.

Os pacientes com dores crônicas refratárias que eu trato não pertencem a nenhum perfil específico. Eles têm diferentes idades, origens, credos, convicções e classes sociais. A única coisa que os une é o impacto da dor em suas vidas e a ausência de melhora apesar de todos os esforços.

Por conta da dor, muitos deles foram obrigados a parar de trabalhar, mudar radicalmente suas vidas, e alguns chegaram a depender de outras pessoas. Estas consequências podem ser tão ou mais dramáticas que a própria dor.

Outro aspecto frequentemente observado em quem carrega a dor crônica é que a grande maioria tornara-se pessoas amarguradas, facilmente irritáveis, intolerantes, explosivas e avessas a novas experiências e mudanças.

Outro aspecto frequentemente observado em quem carrega a dor crônica é que a grande maioria tornaram-se pessoas amarguradas, facilmente irritáveis, intolerantes, explosivas e avessos a novas experiências e mudanças

Estudos neurofisiológicos mostram que desequilíbrios na delicada química cerebral justificam tais alterações comportamentais. Pesquisadores provaram que cérebros que recebem estímulos negativos (como dor) por mais de seis meses, tendem a modificar a produção e metabolismo dos neurotransmissores ligados ao sistema de recompensa. Sistema esse que é o que nos faz ter disposição para acordar todos os dias e encarar os desafios da vida cotidiana.

Vejo a frustração experimentada pelo insucesso dos tratamentos com importante papel como estímulo negativo, o que leva ao agravamento do sofrimento psíquico e alterações comportamentais. Esta “ferida na alma” não se limita a quem sofre de dor. Desconheço uma família que não seja afetada pelas atitudes e comportamentos daqueles que lidam com dores crônicas. E isso explica muita coisa. 

Esta “ferida na alma” não se limita a quem sofre de dor. Desconheço uma família que não seja afetada pelas atitudes e comportamentos daqueles que lidam com dores crônicas. E isso explica muita coisa

Apesar desta frustração ser algo danoso, observo que muitas vezes ela pode ser revertida como motor de transformação de histórias.

Nos últimos anos, independente da causa da dor, a grande maioria dos pacientes que me procuram com queixas de dores crônicas refratárias me relatam variações de um mesmo roteiro: que já tentaram de tudo disponível, que foram a vários médicos, que fizeram sabe-se lá quantas sessões de terapias físicas, gastaram uma boa grana em remédios que não foram capazes de promover alívio consistente da dor. Alguns falam que até melhoraram, mas que os medicamentos tiveram que ser descontinuados por conta de efeitos colaterais.

Muitos falam que chegaram a duvidar da medicina e do real compromisso dos profissionais de saúde para promover a melhora dos seus pacientes. Alguns relatam que descontinuaram seus tratamentos e tentaram assumir suas dores e limitações como seu novo normal. E toca o barco.

Muitos falam que chegaram a duvidar da medicina e do real compromisso dos profissionais de saúde para promover a melhora dos seus pacientes

O problema é que até certo ponto dá para levar, mas existem limites, e a partir de um determinado momento a frustração começa a se transformar em inquietude e inconformismo, como leite sendo aquecido que em algum momento resolve transbordar.

Acredito que na maioria dos casos esta frustração impulsiona muitos pacientes e suas famílias a buscarem alternativas em algo que sai na mídia, redes sociais e nas ferramentas de busca da internet. E isso os leva a um número virtualmente infinito de novas opções de tratamento.

Dentro destas opções, eles são apresentados a conteúdo cada vez maior de matérias, relatos e experiências de pessoas que fazem uso legal da cannabis como meio de minimizar a dor e sofrimento.

Vendo a planta como uma esperança real, muitos pacientes já me relataram que anos de conceitos e preconceitos em relação à cannabis e seus usuários tendem a desmoronar quase que imediatamente. 

Contrario os estudos que mostram que portadores de dores crônicas tendem a evitar novas experiências, muitos conseguem quebrar a inércia e vão buscar ajuda em associações de pacientes e médicos que notoriamente têm prática com uso medicinal da cannabis. 

Contrario os estudos que mostram que portadores de dores crônicas tendem a evitar novas experiências, muitos conseguem quebrar a inércia e vão buscar ajuda em associações de pacientes e médicos que notoriamente têm prática com uso medicinal da cannabis

Esta mesma frustração que motiva os pacientes motivou muitos médicos que como eu se frustraram com as opções tradicionais de tratamento. 

Com evidências científicas cada vez mais robustas e a nossa prática no mundo real, podemos afirmar que a cannabis é uma nova alternativa que tem o poder de ajudar muitos pacientes portadores de sintomas que não conseguem ser aliviados com as alternativas clássicas.

Apesar de renovadas as esperanças, a busca por melhores tratamentos acompanhará a evolução da humanidade. Aquele que acreditar que a cannabis é a solução para tudo e todos os problemas perceberá muito rapidamente que isso não é verdade. Se seus fundamentos forem baseados  na realidade dos fatos e não nas suas convicções, não tenho dúvidas que seguir neste caminho aumentará ainda mais a sua frustração na medicina.

Não tem mistério, os profissionais de saúde que focam na busca de entender a causa real do problema do seu paciente, utilizando de forma racional todos os recursos diagnósticos e terapêuticos disponíveis, reconhecendo e respeitando as individualidades de cada caso, são aqueles que conseguem ajudar a maioria dos seus pacientes.  

Não tem mistério, os profissionais de saúde que focam na busca de entender a causa real do problema do seu paciente, utilizando de forma racional todos os recursos diagnósticos e terapêuticos disponíveis, reconhecendo e respeitando as individualidades de cada caso, são aqueles que conseguem ajudar a maioria dos seus pacientes

P.S. 1: Seja coerente com a realidade. Não entenda que as opções que tratamentos que dispomos para dor simplesmente não funcionam. Muito pelo contrário: a grande maioria dos pacientes com dores crônicas realmente melhoram com os tratamentos já consagrados. Entretanto, aproximadamente um terço destes pacientes não se beneficiam com o que a medicina tradicionalmente oferece. E é deste perfil de paciente que estou abordando neste texto.

P.S. 2: Textos como este que você leu podem ser ferramentas poderosas na revalidação das esperanças de muitas pessoas. Cabe a quem está escrevendo ser absolutamente realista e fiel ao momento do conhecimento científico. Esperanças baseadas em possibilidades concretas são e serão sempre bem vindas e podem ajudar muitas pessoas a melhorar suas vidas.

*Ricardo Ferreira é médico especialista no tratamento de doenças da coluna vertebral e controle da dor e colunista do Sechat.

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e não correspondem, necessariamente, à posição do Sechat.

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