O direito de importar: o início do acesso à cannabis para fins medicinais no Brasil
A resolução oferece uma variedade terapêutica inédita, fornecendo tratamentos personalizados e específicos para diversas patologias e casos clínicos
Publicada em 31/10/2024
Imagem ilustrativa
Arthur Macedo Silva, de 8 anos, tem epilepsia refratária e utiliza canabidiol (CBD), um composto derivado da planta Cannabis sativa , para controlar os sintomas da doença. De acordo com sua mãe, Erica Macedo Silva, o produto importado foi o que melhor se adaptou à condição clínica de Arthur, apresentando uma resposta satisfatória ao reduzir significativamente suas crises convulsivas.
“Iniciamos o uso da cannabis por meio de uma marca nacional, mas não conseguimos resultados positivos no controle das suas crises. Atualmente, o Arthur faz o tratamento com canabidiol gramatura limite de 200mg/ml", relatou a mãe.
É comum ouvir de pacientes que utilizam cannabis medicinal que os produtos importados via RDC 660 fazem uma grande diferença em suas condições de saúde. As principais vantagens desses produtos são uma variedade de formulações farmacêuticas e diversas formas de aplicação, o que permite atender um maior número de pacientes e auxiliar no tratamento de diversas patologias.
A ginecologista Mariana Prado destaca a importância dos produtos à base de cannabis no tratamento ginecológico. Segundo Prado, “na ginecologia, a maioria dos tratamentos requer formulações e apresentações que, muitas vezes, os produtos nacionais disponíveis em farmácias e associações não abrangem".
A resolução é considerada essencial para “garantir o direito dos pacientes a um tratamento adequado”, afirmou a psiquiatra Ana Hounie.
A Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 660 foi Criada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em março de 2022, na qual estabelece critérios e procedimentos para o paciente realizar a importação de produtos à base de cannabis ainda não regulamentados no Brasil. Ela também amplia o acesso a um portfólio mais diversificado de produtos, com diferentes concentrações da substância em miligramas por mililitro, oferecendo um melhor custo-benefício. Para exemplificar, o custo médio de importação é de R$ 500,00, acrescido de R$ 200,00 em despesas logísticas.
“Hoje, acompanhando mais de 800 pacientes em uso de cannabis medicinal, posso afirmar que a maioria não teria condições de arcar com os custos do tratamento se comprados diretamente nas farmácias brasileiras. Além disso, muitos prejuízos por utilizarem outros fitocanabinoides além de CBD e THC, que ainda não estão disponíveis no Brasil”, afirmou a geriatra Gabriela Mânica.
A infraestrutura é o maior desafio para o mercado de cannabis no Brasil
O principal obstáculo logístico relacionado à importação de produtos de cannabis é a limitação nos pontos de entrada. Atualmente, esses produtos chegam ao Brasil apenas pelos aeroportos internacionais de Viracopos, em Campinas, e Guarulhos, na grande São Paulo, que concentra a maior parte das encomendas.
Considerando o tamanho continental do Brasil, o prazo médio de entrega é de aproximadamente 20 dias. No entanto, nos grandes centros, como São Paulo, o prazo de entrega pode ser reduzido para cerca de 10 dias.
Em 2024, o tempo de análise da Anvisa para a liberação do produto importado está mais otimizado comparado ao ano anterior, em que o processo levava em média 10 dias. Hoje, o prazo caiu para 5 dias, com algumas respostas sendo emitidas em apenas 3 dias, segundo Ricardo Teixeira, diretor executivo da TriStar Express, empresa de logística que atua no setor canábico.
"Apesar das dificuldades, os órgãos de fiscalização demonstram sensibilidade em relação aos produtos de cannabis, dando prioridade às análises para liberar a entrada no país. Além disso, a Anvisa tem mostrado uma eficiência crescente nos processos de fiscalização. Percebemos uma grande melhoria, e a tendência é continue avançando", afirmou.
A eficiência no prazo é fundamental para o tratamento do paciente. William Gajardo, morador de Caxias do Sul (RS), lembra que quando iniciou o tratamento, um ano e meio atrás, teve dificuldade para receber o produto devido aos processos burocráticos da importação. "O produto demorava cerca de um mês para chegar até a minha casa, hoje, leva em torno de 20 dias", comentou.
Autorizações
Em 2023, a Anvisa emitiu 136.754 autorizações para importação de produtos, e, até junho de 2024, já foram emitidas mais de 75 mil. Desde 2015, a Agência já permitiu a importação de 366.953 produtos contendo canabidiol (CBD) e outros compostos derivados da planta para tratamento médico.
Origem e evolução da RDC 660
Em 2015, a Anvisa emitiu 850 autorizações individuais para importação de óleos de cannabis, este foi o primeiro ano em que os pacientes puderam realizar esta prática. Na época, a Anvisa regulamentou, em caráter excepcional, a RDC 17 definindo o primeiro parâmetro de controle e fiscalização das importações.
Ao longo dos anos, a demanda aumentou significativamente, levando a Agência a criar a RDC 327 e a RDC 335 - contendo um texto parecido com a RDC 17. “Em 2019, foram efetuados movimentos importantes sobre a cannabis. Foi restabelecido o andamento do PL 399 e a Anvisa lançou as consultas públicas 654/2019 e 655/2019, que resultaram na criação destas RDCs”, explica o advogado especialista em Direito da Saúde, Leonardo Navarro.
Sobrecarregada, tendo um aumento de quase 2.000% no número de autorizações concedidas durante cinco anos, uma média de crescimento anual composto de aproximadamente 83,76% por ano, a Agência implementou a RDC 570 em outubro de 2021. Com este novo movimento, a Anvisa conseguiu reduzir o tempo para aprovação do cadastro e possibilitar que os pacientes tenham acesso mais rápido aos produtos derivados de cannabis para tratamento de saúde.
Surgindo poucos meses depois, a RDC 660 é uma união entre uma união entre a RDC 335/2020 e da RDC 570/2021.
Processo de importação
De acordo com a RDC 660, a importação deve ser feita por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição médica. O processo é realizado pelo site da Anvisa, onde o paciente ou seu responsável legal deve anexar o formulário “Importação e Uso de Produtos derivados de Cannabis” e a receita emitida por um profissional legalmente habilitado.
No formulário, serão solicitadas informações como dados pessoais, dados do prescritor, laudo médico e produto desejado. Já a receita médica precisa conter: nome do paciente; nome comercial do produto; posologia (dose diária); data; assinatura; número do registro e conselho de classe do profissional prescritor.
Após o envio dos documentos, a aprovação da solicitação tem um prazo médio de 10 dias. O paciente pode verificar o andamento da análise na aba “minha solicitação”.
A autorização da Anvisa para o paciente importar produtos à base de cannabis para uso pessoal via RDC 660 tem validade de 2 anos . Durante esse período, o paciente poderá realizar a importação do produto mediante apresentação de receita médica. Após o prazo de validade, o paciente precisa renovar a autorização junto à Anvisa, submetendo novamente a documentação necessária, incluindo uma nova prescrição médica.
O papel do médico
A RDC 660 exige que a importação de produtos de cannabis seja realizada mediante prescrição médica e laudo que justifique o tratamento. Wellington Briques, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Farmacêutica (SBMF), destaca que, além de prescrever, o médico tem a responsabilidade de acompanhar o paciente ao longo de todo o processo terapêutico.
"O médico não deve apenas fornecer um laudo, é crucial monitorar o paciente para garantir a segurança e eficácia em todas as etapas”, explica Briques. Ele também ressalta que a escolha da cannabis como tratamento exige respaldo científico. “O profissional precisa estar bem informado sobre a planta, suas substâncias e suas possibilidades terapêuticas”.
Além disso, o médico deve seguir os requisitos legais, como a solicitação correta da receita e o preenchimento adequado das informações, garantindo que o paciente saiba exatamente qual medicamento adquirir.
Segundo a Kaya Mind, empresa especializada em estudos do mercado de cannabis, em 2023, cerca de 12 mil médicos prescreveram produtos à base de cannabis por meio da RDC 660, um aumento de seis vezes em comparação com 2021. No total, aproximadamente 219 mil pacientes acessaram seus medicamentos através desta regulamentação em 2024.
Daiane Zappe, Gerente de Negócios da Revivid Brasil, destaca a importância da RDC 660 para permitir que os pacientes, junto com seus médicos, escolham o produto mais adequado para seus tratamentos. Atualmente, conforme a Anvisa, a RDC 660 conta com 601 produtos de diferentes composições.
Fiscalização e segurança dos produtos
As empresas que atuam sob a RDC 660 estão investindo para trazer para o Brasil produtos de alta qualidade, atendendo aos padrões rigorosos de segurança e eficácia das autoridades regulatórias. Essas empresas buscam parcerias com fornecedores bem avaliados no mercado e que adotam práticas de fabricação avançadas, garantindo que os produtos no mercado brasileiro sejam seguros e eficazes no tratamento de diversas condições de saúde.
O processo logístico rigoroso também ajuda no controle e segurança dos produtos. " A aprovação da Anvisa exige um nível elevado de documentação, garantindo a seriedade e a qualidade dos produtos. Existem empresas que operam via RDC 660 extremamente sérias, com um olhar farmacológico criterioso, que cumprem todas as exigências documentais”, afirma Ricardo Teixeira.
Ricardo explica ainda que muitas dessas empresas armazenam suas cargas em armazéns certificados pela FDA (Food and Drug Administration), órgão regulador dos Estados Unidos, responsável por garantir a segurança e a qualidade dos alimentos e medicamentos. Ele diz que as empresas investem mais para utilizar a instalação de alto padrão que opera em Miami.
“Para operar o armazém, é necessário atender às exigências de boas práticas de fabricação, manipulação e embalagem, todas em nível internacional, ou que demonstrem a seriedade das empresas envolvidas”, conclui.
O advogado Leonardo Navarro complementa que, nos últimos meses, a Anvisa adotou uma postura mais criteriosa na verificação da regularidade dos produtos e dos alvarás das empresas em seus países de origem.
Certificação de Análise
Um COA, ou Certificado de Análise, é um documento que atesta a conformidade de um produto com as especificações e normas de qualidade.
No contexto de produtos de cannabis, um COA é emitido por laboratórios independentes e fornece informações detalhadas sobre a composição do produto, incluindo:
Conteúdo de canabinoides: Indica a quantidade de canabinoides, como THC e CBD, presentes na amostra.
Terpenos: Relacionado aos compostos aromáticos que influenciam o efeito e o sabor do produto.
Análise de contaminantes: Verifica a presença de substâncias indesejadas, como pesticidas, metais pesados, fungos e bactérias.
Esse certificado é fundamental para garantir a transparência e a segurança do produto, permitindo que os consumidores e profissionais de saúde tenham confiança na qualidade e na composição dos produtos de cannabis utilizados para fins medicinais.
Pelayo Gutierrez, CEO da Volcanic, empresa colombiana que atua no mercado brasileiro, ressalta que, cerca de 10 anos após o início das importações, não se tem um único relato de efeito adverso grave. De acordo com Pelayo, o COA é essencial para atestar a quantidade dos componentes presentes em cada um dos itens e isso é o que proporciona ao profissional de saúde habilitado a segurança na hora de fazer a prescrição.
A médica geriatra, Gabriela Mânica, acrescenta que a disponibilidade dos certificados de análise que atestam a qualidade dos produtos é comum entre as empresas da 660. “Está prática permite que o médico possa averiguar a qualidade do produto e disponibilizar o melhor tratamento para o seu paciente”.
Desafios e o futuro da RDC 660
Nos últimos anos, a manutenção da RDC 660 tem sido alvo de debates. Recentemente, o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), maior entidade representativa da indústria farmacêutica no Brasil, solicitou à Anvisa a revogação da norma, alegando que a regulamentação não atende especificamente aos critérios de segurança e qualidade, o que poderia resultar em potenciais riscos à saúde da população.
Em contrapartida, entidades como a Associação Pan-Americana de Medicina Canabinoide (APMC) e a Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia (Ambcann) enviaram uma carta defendendo a permanência e a manutenção da RDC 660, destacando que sua revogação seria um retrocesso para a saúde pública no Brasil. As associações pedem que a RDC 660 continue em vigor, até que o Brasil tenha uma produção nacional de produtos à base de cannabis.
Para Erica Macedo, mãe do Arthur, a revogação da RDC 660 poderia prejudicar diversos pacientes “O fim da 660 cria uma obrigação para a compra do produto nacional, que em alguns casos, como o do meu filho, não tem efeitos eficientes como os importados”.
A Anvisa confirmou que a revisão da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 660/2022, que regula a importação de produtos derivados de cannabis, não está atualmente na agenda regulatória.
Os Avanços
O deputado estadual do Paraná, Goura Nataraj (PDT), afirmou que a normativa trouxe avanços importantes, desburocratizando o acesso a produtos de cannabis para uso medicinal e contribuindo para o desenvolvimento de um mercado emergente no país. Goura acrescenta que o Brasil deve “utilizar o potencial que esta planta tem para associações e empresas locais, auxiliando no crescimento do setor têxtil, industrial, desenvolvimento genético e pesquisas científicas de larga escala”.
Diferenciais da RDC 660
Para Briques, a RDC 660 exerce um papel crucial dentro do cenário medicinal da cannabis. Por conta de seu extenso portfólio, contendo mais de 600 produtos disponíveis, o médico tem “a possibilidade de escolher o melhor produto para o tratamento de cada paciente”. “Esses produtos são extremamente úteis no tratamento de condições como epilepsia fármaco-resistentes, dor crônica, ansiedade, distúrbios do sono e outras condições nas quais já temos um bom nível de evidência científica”, completa o médico.
Segundo Pelayo, a RDC 660 é a única capaz de cobrir o tratamento de todas as patologias com indicação para o uso da cannabis. Isso se deve por conta dos diversos canabinoides, como CBG, CBD, THC, THCV, CBN e outros, presentes na composição dos produtos. Além disso, o empresário destaca as diferentes vias de administração, como óleos, tinturas, cápsulas, cremes, supositórios, gummy, spray bucal, presentes na 660. “Atualmente somente está RDC pode oferecer tantos recursos terapêuticos”, comenta.
A Anvisa publicou este ano uma nota técnica apresentando a lista de produtos derivados da cannabis que podem ser importados pelo paciente, por meio da RDC 660/2022.
A RDC 660 desempenha um papel relevante na vida de muitas famílias que dependem de tratamentos à base de cannabis para garantir a saúde e a qualidade de vida de seus entes queridos. A revisão dessa norma pode ser o melhor caminho para um futuro em que todos tenham seu tratamento garantido, ampliando o acesso a produtos de qualidade, com segurança e as opções terapêuticas fundamentais para o bem-estar dos pacientes.