A situação é absurdamente caótica: pessoas ligadas à cannabis são atingidas pela tragédia climática no RS

Pacientes e médico precisam deixar suas casa. Associação Terapêutica realiza trabalho para assistir todos os associados afetados

Publicada em 14/05/2024

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O levantamento diário realizado pela Defesa Civil aponta mais de 2 milhões de pessoas afetadas pela maior catástrofe climática da história do Rio Grande do Sul. A calamidade teve início em 27 de abril e já dura mais de três semanas. Entre as vidas atingidas estão pacientes, familiares, médicos e associações ligadas ao mundo da cannabis.

“A situação é absurdamente caótica. Quem acompanha apenas pela mídia não entende a dimensão desta tragédia”, relata a médica de família e comunidade Alice Poltosi, antes de iniciar seu turno de 14 horas atendendo em um abrigo da grande Porto Alegre. A capital é uma das 447 cidades afetadas pelas fortes chuvas. 

Devido à longa jornada de trabalho assistindo algumas das cerca de 500 mil pessoas desalojadas no estado, Alice precisou suspender os seus atendimentos ligados à cannabis. Uma rede de médicos de outros estados está auxiliando alguns de seus pacientes

Casos graves, como o do menino de 12 anos, João, portador de paralisia cerebral, recebem um acompanhamento diário da assessora de Alice. “Se a chuva permitir, pretendo retomar o atendimento e o suporte a todos os meus pacientes. Estou nas mãos do tempo. O que não é urgente, infelizmente, terá que esperar”, comenta a médica.

 

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Centro Histórico de Porto Alegre alagado pela elevação do Guaíba. Gustavo Garbino/ PMPA

Vidas afetadas

Paciente canábico há cerca de quatro anos e morador do bairro Centro Histórico, o menino João, agora se abriga do “caos” na casa de familiares em uma cidade do litoral gaúcho. Segundo sua avó, Ana Luiza, essa medida foi necessária, pois ficou inviável cuidar de João em uma região sem água, luz e com acesso dificultado, visto que ele utiliza cadeira de rodas. A cheia do Lago Guaíba chegou a 5,33 metros - 2m acima da cota de inundação - e afetou drasticamente o bairro em que mora a família.

“Mesmo morando no 25º andar, recebemos um pedido da Defesa Civil para deixarmos nossa moradia. Ficamos um tempo na casa de familiares, em um bairro próximo, mas a situação era a mesma, não tínhamos água e luz, então decidimos que seria melhor para o João ir ao litoral, ficar com a família do pai”, relata Ana Luiza.

Apesar da melhora significativa com o uso do canabidiol, o menino ainda tem dificuldade com mudanças. Segundo sua avó, a incerteza sobre a volta para casa e a distância de sua mãe estão incomodando o seu neto. Outra preocupação de Ana Luiza é com a continuidade do tratamento canábico.

“Demos sorte, uma semana antes de começar as chuvas chegaram duas doses do tratamento. O correio não está entregando encomendas, por hora estamos abastecidos, mas não sei até quando. Recebemos o medicamento pelo estado, em situações normais já é um drama, muitos entraves jurídicos, agora então…”, relata a avó.

Momento de compartilhar

Diferente da família de João, a paciente portadora de fibromialgia, Elaine Chassot, de 60 anos, não teve a mesma sorte em adquirir o óleo antes do início da chuva. Empresária, dona de Pet Shop, ela passou um tempo trabalhando sem utilizar a cannabis, até que uma amiga doou um frasco do medicamento para ela.

“Foi horrível, estava muito difícil de realizar os trabalhos na Pet Shop, fiquei com muita dor. Agora, tenho o tratamento por um tempo, mas não sei o que fazer depois que o óleo acabar”. Relata Elaine.

A usuária medicinal da cannabis, ainda teve sua casa tomada pela água, “perdi tudo”, lamenta a moradora do bairro Sarandí, com 91,3 mil habitantes, que foi completamente atingido pelas cheias. Agora, Elaine está vivendo em um apartamento emprestado, próximo à Pet Shop, sem previsão de voltar para sua casa.

Busca por associados

Assim como Elaine, a Associação Terapêutica Acuracan teve seu espaço completamente atingido pela enchente do Guaíba. Móveis, insumos e estruturas dos consultórios sociais que estavam sendo construídos foram tomados pela água. Segundo Patrícia da Rosa, presidente da Acuracan, ainda não foi possível realizar um levantamento do que foi perdido, visto que, barcos e canoas são os únicos meios de locomoção capazes de chegar ao local.

 

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Sede da Acuracan alagada por conta da enchente do Rio Guaíba. Arquivo pessoal

Para a associação, o principal, neste momento de crise é o paciente. “Felizmente, nosso laboratório não foi atingido. Estamos com escassez de matéria-prima e outros produtos, mas agora o material fica em segundo plano. Nosso foco é localizar e auxiliar todos os associados”, relata a presidente da Acuracan. 

Nas regiões distantes da capital gaúcha, a associação realiza ações a fim de suprir a necessidade de tratamento de seus associados. Medicamentos estão sendo enviados, por ônibus, para regiões onde os correios não chegam, por conta dos danos nas estradas.

Já na região metropolitana, a equipe da Acuracan está entregando o óleo “em mãos” para os seus pacientes. Devido à quantidade de pessoas desabrigadas - só em Porto Alegre são 14,2 mil pessoas em abrigos da prefeitura - e às dificuldades com sinal de celular, o processo tem sido lento e penoso.

“Estamos entrando em contato com os pacientes da maneira como conseguimos. Perdemos alguns documentos por conta do alagamento na nossa sede, então buscamos alguns nomes nas listas dos abrigos. Não iremos parar até ter certeza da situação de cada um dos nossos associados. É muito reconfortante quando encontramos alguém que estava desaparecido, nos dá força para continuar focados nas buscas”, relata a presidente da Acuracan. 

Junto a este trabalho, a associação abriu uma chave PIX 48.947.452/0001-01, para continuar mantendo o tratamento gratuito de associados que “perderam tudo” e não conseguem custear o valor do óleo. Também foi realizada uma parceria com a Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis Sativa (SBEC), que realiza atendimentos online com pessoas afetadas.