Proposta de restrição na importação de Cannabis (RDC 660) gera reação no mercado
Proposta presente na revisão da RDC 327/2019 para a RDC 660/2022 divide opiniões e levanta dúvidas sobre acesso e judicialização
Publicada em 12/12/2025

O Sechat conversou com especialistas e representantes de empresas de importação para entender a visão do mercado. Imagem: Canva Pro
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) adiou, nesta quarta-feira (10), a votação que definiria as novas diretrizes para a regulação de produtos de Cannabis no Brasil. A proposta apresentada sugere uma alteração significativa no acesso via importação por pessoa física, regido atualmente pela RDC 660/2022. O Sechat conversou com especialistas e representantes de empresas de importação para entender a visão do mercado.
A revisão da Resolução da RDC 327/2019, pautada durante a reunião da Diretoria Colegiada (Dicol), teve seu andamento interrompido após um pedido de vista do diretor Thiago Campos. Pela minuta apresentada, a autorização para importar passaria a ser condicionada à inexistência de itens equivalentes no mercado nacional.
Os dados da Agência revelam a série histórica de autorizações de importação de produtos de cannabis com crescimento acentuado e ininterrupto no período de 2015 a 2024. O total de autorizações concedidas saltou de 850 em 2015 para 167.337 em 2024, resultando em um crescimento exponencial de 19.857%.
O total acumulado de autorizações de importação por pessoa física, conforme a RDC 660 - e antecessoras - , ultrapassou a 458.438 ao longo da década.
Segundo dados da Anvisa, atualizados no início de setembro de 2025, os pacientes que optarem pela importação têm hoje cerca de 600 opções de produtos de cannabis. Essa oferta expressiva é suportada por um mercado que já reúne mais de 500 empresas e ampla oferta de preço e concorrência.
Equivalência técnica nos produtos e impacto no paciente
A mudança técnica recai sobre o critério de similaridade entre o item importado e o nacional. A regra não proíbe a importação de todos os produtos de Cannabis, mas veda a entrada daqueles que já possuem concorrentes idênticos em especificações básicas regulamentadas pela agência.
Priscila Gava Mazzola, professora da Unicamp e colunista do Portal Sechat, explica que a medida busca equiparar a planta a outras categorias de medicamentos. A importação excepcional, nesse contexto, seria um recurso apenas para quando não houvesse alternativa local.
“A mudança proposta pela Anvisa não proíbe a importação de CBD isolado, mas restringe esse acesso quando houver, no Brasil, um produto equivalente em forma farmacêutica e concentração”, detalha Mazzola. Segundo ela, a intenção regulatória é reduzir importações redundantes e aumentar o controle sanitário, embora exija que o prescritor justifique a ausência de alternativa nacional.
Para Thaise Alvarez, CEO da Alma Lab, reduzir a comparação apenas à concentração de canabinoides pode ignorar características bioquímicas fundamentais. Ela cita o efeito comitiva, que é a interação entre diferentes compostos da planta, como essencial para o sucesso terapêutico.
“Tratar extratos como genéricos é desconsiderar exatamente aquilo que faz da Cannabis um medicamento tão personalizado e tão responsivo em múltiplas condições clínicas”, argumenta Alvarez. Para ela, a troca involuntária de marca pode desestabilizar o paciente, distanciando a proposta da realidade clínica e da ciência dos extratos.
Christiani Di Risio, diretora geral da Erth Wellness, reforça que a prioridade deve ser a estabilidade de quem já utiliza os produtos de Cannabis. “Defendemos que qualquer revisão normativa considere, antes de tudo, a proteção do paciente e a manutenção do acesso aos itens que já demonstraram eficácia individual”, pontua.
“O ponto central aqui é o paciente. Toda discussão regulatória precisa ter como prioridade o atendimento, a continuidade do tratamento e a garantia de acesso”, finaliza Di Risio.
Custos e acesso aos produtos de Cannabis no mercado nacional
Renata Paioleti, gerente de marketing da Golden Drops CBD, aponta a disparidade de preços como um entrave para a migração obrigatória para os produtos de Cannabis nacionais.
A minuta estabelece que a maior parte das novas regras da RDC 327 entraria em vigor em 90 dias. Já a restrição específica à importação teria um prazo de adaptação de 12 meses. “Mesmo com o prazo de transição, é preciso reconhecer que a substituição de importação direta por produtos disponíveis nas farmácias pode representar um aumento significativo de custo para o paciente”, afirma Paioleti.
Para Renata, a decisão pode criar uma "reserva de mercado artificial". Isso prejudicaria empresas que atuam no acolhimento de pacientes e na facilitação do acesso seguro. "Hoje, grande parte dos pacientes que utilizam Cannabis Medicinal no Brasil depende exclusivamente da importação, não apenas por preço, mas por formulação e adequação terapêutica. A equivalência não pode ser avaliada apenas pela existência de um produto na prateleira", completa.
Judicialização do acesso a produtos de Cannabis e cenário jurídico
A restrição proposta levanta a possibilidade de aumento no número de processos judiciais para garantir o acesso a marcas específicas. Pedro Gabriel Lopes, diretor jurídico do Instituto Fícus, avalia que a interrupção forçada de tratamentos gera insegurança jurídica.
“Acredito que exista, sim, uma chance de judicialização justamente por conta disso, para que se continue o tratamento. Havendo uma mudança, pode haver algum risco”, analisa o advogado que acompanhou a reunião da Dicol.
Lopes destaca também que a inclusão das restrições à RDC 660 no texto final ocorreu sem amplo debate prévio com a sociedade civil. “O texto que foi colocado da RDC 660, na forma como foi apresentado, não foi discutido com a sociedade. Esse é um ponto que levanta bastante preocupação”, conclui.
Ricardo Parra Silva, CEO e fundador da Gotta Pharma, também demonstra preocupação com a falta de clareza da proposta, especialmente no que diz respeito às concentrações. “A avaliação será feita pela concentração do extrato ou dos canabinoides? Isso abre uma nova questão, já que há óleos full spectrum com 50%, outros com 5% de CBD, entre outras variações.”
Segurança sanitária dos produtos de Cannabis importados
Além das questões de mercado, o debate trouxe à tona um ponto estrutural da atual norma de importação. Pedro Gabriel Lopes avalia que, sob a ótica da saúde pública, a preocupação do relator em estabelecer filtros de qualidade é juridicamente fundamentada.
"O que precisa ser dito é que os produtos que entram pela 660 não têm nenhum tipo de controle de qualidade ou confirmação sobre a sua segurança", pondera o advogado. Para ele, a Anvisa tenta superar essa lacuna regulatória de itens que poderiam ser autorizados pela via sanitária tradicional.
No entanto, o mercado de importação tem reagido com autorregulação. Muitos players se adequam a padrões de qualidade e ao rigor da indústria farmacêutica, disponibilizando o Certificado de Análise (CoA) para garantir a segurança e a composição do produto. Além disso, muitas empresas já optam pela certificação em laboratórios independentes credenciados pela REDE REBLAS.
A farmacêutica Priscila Gava Mazzola lembra que a revisão busca diminuir a assimetria entre fabricantes nacionais, que cumprem requisitos rigorosos, e importadores diretos.
Lopes alerta que a solução não deve ser apenas uma proibição baseada na existência de similares. É necessária a criação de critérios claros de qualidade para os produtos de Cannabis que entram no país. "Cabe à Anvisa fazer essa seleção de critérios, pensando sempre na segurança do paciente", finaliza o diretor jurídico.


