O autocultivo de cannabis: A jornada do paciente e a busca por tratamento médico personalizado
O jardineiro e ervoafetivo Augusto Saraiva compartilha sua experiência no cultivo de cannabis como alternativa terapêutica, enfrentando desafios legais e o preconceito em busca da autonomia no tratamento de uma doença rara
Publicada em 10/10/2024
Imagem ilustrativa
Augusto Saraiva, ex-profissional de gestão da tecnologia da informação e hoje jardineiro em tempo integral, iniciou sua jornada no cultivo de cannabis em 2018, após o avanço da doença rara neurodegenerativa chamada deficiência de CPT2, que o deixou em estado crítico. Sem alternativas eficazes na medicina convencional, ele se voltou para o uso medicinal da cannabis e, desde então, vem buscando conhecimento e autossuficiência no cultivo de sua própria terapia.
“A necessidade do uso medicinal de cannabis surgiu em 2018, diante do avanço da doença rara neurodegenerativa que me acomete, chamada deficiência de CPT2. Esse avanço me deixou em estado semi-vegetativo. O uso medicinal da maconha se deu pelo fato de que qualquer tratamento convencional da medicina moderna se mostrou absolutamente ineficaz. Sem nenhuma alternativa médica, me voltei a estudos de medicinas alternativas e iniciei a minha jornada em busca de conhecimento e autossuficiência na produção do meu remédio em um ambiente proibicionista e extremamente preconceituoso”, conta Augusto.
O autocultivo de cannabis no Brasil começou a ser discutido nos anos 2000, podemos dizer assim já que seria impreciso cravar uma data para o início dessa jornada. É que há relatos de pessoas que começaram a cultivar cerca de 10 e 20 anos atrás, sem autorização judicial, é válido esclarecer. O movimento começou, inicialmente, entre pacientes que buscavam alternativas de tratamento para doenças graves como epilepsias resistentes e esclerose múltipla e outros casos de transtornos mentais. Influenciados por relatos internacionais, como o caso de Charlotte Figi, uma criança americana que obteve alívio para sua epilepsia com cannabis, esses pais começaram a explorar o cultivo caseiro.
Ricardo Nemer, sócio-fundador da Rede Reforma, foi pioneiro no Brasil ao impetrar a primeira tese de Habeas Corpus (HC) para cultivo de Cannabis com fins terapêuticos, em 2016. O pedido visava garantir o direito de Nemer continuar cultivando a planta para seu tratamento de saúde, após sua casa ser invadida pela polícia, com apreensão das plantas. Posteriormente, foi confirmado que havia respaldo médico para o uso da Cannabis. Em sequência, Margarete Brito, fundadora da Apepe, também obteve seu HC em novembro do mesmo ano, seguido por Alexandre Meireles (pai de paciente) e Cidinha Carvalho, da Cultive, que conseguiram a decisão favorável consequentemente. O movimento ajudou a consolidar a base legal para o cultivo de Cannabis com fins medicinais no Brasil.
Em 2014, após uma mobilização de pacientes e seus familiares, foi articulada uma Ação Civil Pública junto ao Ministério Público Federal em Brasília. Como resultado, a ANVISA regulamentou o uso de medicamentos à base de cannabis, mas restringiu o acesso a produtos importados, o que acabou gerando demanda crescente de autocultivo. Em 2018, decisões judiciais começaram a ganhar mais força ao reconhecer o direito de pacientes e famílias cultivarem suas próprias plantas. Esse movimento surgiu devido à dificuldade de acesso aos tratamentos, ao alto custo dos produtos importados e à escassez de medicamentos adequados no mercado.
Saraiva destaca que o autocultivo foi essencial para descobrir a formulação exata de canabinoides que combinados agem diretamente nos sintomas da sua doença. Segundo ele, nenhuma indústria farmacêutica foi capaz de produzir a fórmula que desenvolveu.
“Somente a partir da concessão do salvo conduto que pude de fato obter as genéticas necessárias para a obtenção de THC, CBD e CBG nos níveis adequados às minhas necessidades. Até hoje nenhuma associação ou indústria farmacêutica foi capaz de produzir a formulação que desenvolvi. Sendo assim, o autocultivo é a única forma de manter meu tratamento dentro dos parâmetros de qualidade necessários e, por consequência, imprescindível para a minha sobrevivência”, afirma.
Apesar das dificuldades, o preconceito contra o uso medicinal da cannabis no Brasil continua sendo um dos maiores desafios que Augusto enfrenta. Ele aponta que, além de ser alvo de estigma social, está preso em uma situação judicial que limita o seu direito de acesso ao tratamento.
“O preconceito contra a maconha está profundamente arraigado na sociedade brasileira e alimentado por falsidades e distorções dos reais efeitos do seu uso. A educação e o conhecimento científico sobre essa incrível planta medicinal são a chave para superar esse medo irracional. Eu sonho em ver essa planta na farmacopeia brasileira, nas farmácias vivas do SUS e num pote de vidro ao lado da camomila, na casa da vovó”, diz Augusto, refletindo sobre o estigma.
Ele revela que, apesar da autorização judicial para cultivar cannabis, ele e sua esposa enfrentam uma decisão arbitrária e ilegal que restringe o uso de seu remédio fora de casa e limita sua liberdade de expressão sobre o cultivo. Isso, segundo ele, tem colocado sua vida em risco, pois impede o acesso a tratamentos médicos fora de sua residência.
As dificuldades também se estendem ao ambiente regulatório, que ele considera ineficaz. “Desde 2020, o desafio aumentou, pois o ambiente proibicionista provoca distorções surreais. A ausência de um ambiente regulatório cria um mercado dependente de importações, cujos produtos não são verificados pela ANVISA quanto à qualidade e eficácia, e têm valores inalcançáveis para a maioria dos brasileiros. Isso coloca pacientes na mão do tráfico ou de medicamentos duvidosos”, critica o jardineiro.
Augusto também aponta que a regulamentação seria uma solução urgente para o problema. “É uma necessidade urgente uma regulação da matéria pelo Ministério da Saúde, que tem a competência constitucional para fazê-lo. Cada dia que essa regulação não sai é uma omissão e uma violação flagrante dos direitos de acesso à saúde dos brasileiros.”
Para ele, a regulação é essencial não só para garantir a qualidade e segurança dos tratamentos, mas também para permitir que o Brasil atinja seu potencial como um dos maiores e melhores produtores de cannabis para fins medicinais.
“Somente com uma regulação séria e o fim do proibicionismo é que o Brasil conseguirá alcançar sua vocação natural de maior e melhor produtor de maconha para uso medicinal. As condições para isso estão todas à nossa disposição, precisamos é do fim do proibicionismo”, conclui Augusto.
Terapia canabinoide
A médica Lina Dantas diz que o uso medicinal do THC tem gerado resultados positivos para pacientes com espasticidade. “Eu acompanhei o caso de uma menina de 20 anos com espasticidade severa. Ela precisa de muito THC para se manter estável. Ela costumava me dizer: 'Doutora, o que é viver dopada e o que é viver chapada? Prefiro viver chapada do que dopada'. Isso porque ela tomava diversas medicações apenas para suportar a dor”, relata Dantas.
Segundo a médica, a paciente sofreu um engasgo na infância que a deixou em cadeira de rodas por 18 anos, mas hoje consegue caminhar até 10 quilômetros, mesmo com dificuldades e contraturas nas pernas. “Ela defende o uso do THC porque, sem ele, não consegue obter uma resposta analgésica satisfatória”, complementa a profissional da saúde.
Resultados diferenciados com THC em diversas condições
Além de espasticidade, o THC tem sido amplamente utilizado no tratamento de câncer, caquexia e anorexia, com resultados promissores. “No tratamento do câncer, o THC também se mostra eficiente, assim como na caquexia e anorexia”, afirma Lina Dantas.
Contudo, a médica alerta para os efeitos adversos em casos específicos, como bulimia e outros distúrbios alimentares. “O THC pode piorar o quadro, sendo melhor o uso de CBD ou THC-V”, explica.
Auto cultivo como alternativa
Diante da crescente demanda por produtos à base de cannabis, o autocultivo surge como uma alternativa viável para muitos pacientes, que enfrentam dificuldades no acesso via judicial ou por meio de produtos da indústria farmacêutica. “Isso não impede que uma pessoa invista no autocultivo. Eu vi um vídeo do Leandro Ramirez (médico pai de paciente portador da Síndrome de Dravet, uma doença rara, em que convulsões são um dos sintomas), por exemplo. Ele tem um autocultivo bem sofisticado, com vários tipos de equipamentos, e faz um óleo super refinado para o filho dele”, comenta a médica, reforçando o potencial dessa prática.
Indústria farmacêutica e a necessidade de avanços tecnológicos
Lina Dantas também abordou o papel da indústria no desenvolvimento de produtos de alta qualidade, destacando o impacto positivo que investimentos em tecnologia podem gerar. “Por isso, falo sobre a importância da indústria. Com o investimento financeiro, ela pode desenvolver tecnologias de extrações mais precisas”, afirma.
Qualidade de vida e alívio
De acordo com a médica Graziella Gobbetti, "o autocultivo possibilita cultivar a planta e produzir seu remédio dentro de casa, garantindo a qualidade de vida e o alívio que o paciente merece". Ela reforça que, em muitos casos, é necessário que o paciente produza seu próprio medicamento, especialmente em patologias complexas que demandam ajustes precisos nas doses e formulações.
Graziella compartilha um exemplo que apresenta bons resultados: "Tenho um caso de um paciente adolescente, que tinha muitas crises convulsivas. Ele faz uso de óleo em dose alta, três vezes ao dia, e teve melhora intensa das crises após os pais cultivarem seu próprio medicamento". Esse caso destaca a importância do autocultivo no tratamento de condições neurológicas graves, onde a personalização da terapia pode fazer toda a diferença.
Além disso, a médica explica as diferentes classificações das cepas de cannabis, que influenciam diretamente no tratamento: "Embora existam milhares de cepas, podemos classificá-las como: 1. Alta concentração de THC e baixa de CBD; 2. Concentrações de CBD e THC equivalentes; 3. Alta concentração de CBD e baixa de THC". Ela alerta, no entanto, que as cepas podem variar em seus efeitos, mesmo dentro da mesma categoria. "As cepas podem se modificar tanto que a mesma variante pode ter efeitos diferentes."
Por fim, Graziella enfatiza a importância da avaliação médica: "Influenciam no tratamento sim, por isso é preciso uma boa consulta e avaliação do paciente para seguir com o que for mais indicado no seu caso". O autocultivo, enquanto prática promissora, requer acompanhamento especializado para que os pacientes possam alcançar os melhores resultados no tratamento com cannabis.
Segundo a farmacêutica Adriana Russowsky, as cepas de cannabis, também conhecidas como “strains,” são subespécies híbridas da planta desenvolvidas por meio de cruzamentos genéticos. Visam atingir um potencial terapêutico específico, para tratamento de diversas condições de saúde.
Cepa de Cannabis: cruzamento genético e potencial terapêutico
As cepas de cannabis têm ganhado destaque no tratamento personalizado de diversas condições e doenças. Segundo Russowsky, essas variedades são selecionadas para atingir o principal dos alvos do tratamento com maior eficácia, através de um perfil com canabinoides, terpenos e antioxidantes apropriados.
Por exemplo, a Jack Herer é uma cepa conhecida por seu efeito de aumento de foco, sendo indicada para o tratamento do TDAH. Já a Charlotte’s Web, rica em CBD e com baixos níveis de THC, é popular no tratamento de condições como a síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut, duas formas graves de epilepsia. Outras cepas, como Harlequin e Sour Tsunami, têm se mostrado eficazes no alívio dos sintomas da esclerose múltipla.
Autocultivo de cannabis e o uso medicinal
O debate sobre o autocultivo de cannabis para fins medicinais continua a dividir opiniões. Entretanto, para a médica Maria Teresa Jalbut Jacob, especialista em Endocanabinologia, Cannabis e Canabinoides, não há qualquer justificativa para que pacientes cultivem cannabis em casa. Ela destacou a importância de medicamentos com qualidade farmacêutica para garantir a segurança e a eficácia no tratamento de diversas patologias.
Segundo Maria Teresa, a cannabis usada para fins medicinais deve ser tratada como qualquer outro medicamento. "Cannabis de uso médico é medicamento, remédio como qualquer outro (anticonvulsivante, anti-hipertensivo, antidepressivo, antiarrítmico, etc). Ninguém produz remédios ou cultiva seus princípios ativos em casa", explicou. Ela ressalta que a produção de medicamentos obedece a normas internacionais rigorosas para garantir a eficácia e a segurança do produto, especialmente no que diz respeito à ausência de contaminações e à padronização das doses.
A especialista afirma que o autocultivo aumenta os riscos de complicações e ineficácia, uma vez que os pacientes podem não ter controle sobre as substâncias ativas presentes nas plantas cultivadas e suas concentrações. "É essencial para a segurança de nossos pacientes o uso de produtos de qualidade farmacêutica, com doses estandardizadas, onde saibamos exatamente quais as substâncias ativas da planta estão presentes e qual a concentração por gota", reforçou a médica.
Diferença entre as cepas e suas aplicações
Maria Teresa também esclareceu que existem três tipos principais de cepas de cannabis utilizadas para fins médicos, e a escolha da cepa adequada depende de uma análise criteriosa do paciente. "O tipo I tem uma concentração predominante em THC, o tipo II tem uma proporção balanceada entre THC e CBD, enquanto o tipo III é predominantemente CBD", descreveu. A escolha do quimiotipo depende de diversos fatores, como o perfil clínico do paciente, suas comorbidades, medicações já em uso, idade e histórico de saúde mental.
"A seleção da cepa mais adequada é fundamental, já que alguns quimiotipos podem ser proscritos dependendo do quadro clínico do paciente", acrescentou a especialista.
Autocultivo e o acesso regulado
Ao ser questionada sobre as vantagens e desvantagens do autocultivo, Maria Teresa foi enfática ao afirmar que não há benefícios. "Diante das considerações anteriores, não existe nenhuma vantagem ou indicação para autocultivo quando se fala em cannabis para uso médico", disse. Para ela, a maior desvantagem é o fato de que pacientes que utilizam cannabis medicinal são aqueles que já não respondem a tratamentos convencionais. Portanto, esses pacientes precisam de medicamentos confiáveis, e o autocultivo pode resultar em um tratamento ineficaz, gerando expectativas falsas.
Autocultivo de cannabis ganha destaque no Brasil em meio à crescente demanda por tratamentos medicinais
Com o avanço da indústria canábica medicinal ao redor do mundo, o Brasil começa a vivenciar um aumento no interesse pelo autocultivo da planta. Segundo Luiz Borsato, empresário especializado em sementes de alta qualidade para cultivo, essa prática oferece autonomia aos usuários que dependem da planta para fins terapêuticos. “O autocultivo sempre será uma ótima opção. Hoje, vejo que a indústria farmacêutica já está bastante avançada na Europa, Estados Unidos e Canadá, mas o autocultivo nunca vai deixar de ser uma opção que representa resistência, autonomia e até mesmo um hobby fantástico", afirma Borsato.
Variedades e efeitos no tratamento canábico
Assim como em outros mercados agrícolas, como o de milho, existem diferentes variedades da Cannabis, chamadas de cepas, que possuem características distintas em termos de morfologia, ciclo de maturação e composição de canabinoides. Borsato explica que “uma variedade da espécie Cannabis, o que (como já foi dito) chamamos de strain, vai ter um perfil genético diferente da outra e isso se expressa na morfologia da planta, que pode ser mais alta ou mais baixa, ter flores com formatos distintos, aromas e sabores diferentes, além de produzir teores variados de substâncias terapêuticas".
Entre as variedades cultivadas, ele destaca o cânhamo industrial, conhecido por ter baixos níveis de THC e ser usado principalmente para fins industriais, e outras como a Early Lemon Berry, que chega a apresentar até 25% de THC, e a Auto CBG-Force, com altos teores de CBG, um canabinoide que tem mostrado resultados promissores no tratamento de Parkinson e artrite.
Autocultivo: uma necessidade ou hobby?
Questionado sobre a necessidade do autocultivo no futuro, Borsato vê com otimismo a evolução da indústria canábica, mas destaca que o cultivo caseiro terá sempre seu espaço. “No futuro, espero que os fármacos industriais sejam mais acessíveis e populares, mas o autocultivo nunca vai deixar de ser uma opção que representa resistência, autonomia e até mesmo um hobby fantástico", reitera.
Dicas para quem deseja cultivar
Para os interessados no autocultivo, Luiz Borsato enfatiza a importância do estudo. “Principalmente estudar, estudar e estudar", aconselha. Ele também recomenda a escolha cuidadosa das cepas, considerando o ambiente de cultivo, porte da planta e os tipos de canabinoides desejados. Para garantir a qualidade das sementes, ele indica que os cultivadores busquem fornecedores com credibilidade, como a Netseeds onde está como CEO, que participa de eventos e oferece atendimento especializado.
Mercado em expansão no Brasil
Atualmente, o Brasil conta com cerca de 5 mil Habeas Corpus (HC) expedidos para cultivadores, número que, segundo Borsato, poderia crescer exponencialmente caso o uso recreativo fosse regulado, como aconteceu no Uruguai. “Hoje, o IRCCA contabiliza 13,5 mil cultivadores registrados e ativos no Uruguai, e já foram registrados 27 mil desde 2013. Se aplicarmos uma regra de três para o Brasil, poderíamos ter 853 mil cultivadores dispostos à regulação do Estado e 1,7 milhões de cultivadores inativos", observa.
A regulamentação, como a proposta pelo PL 399/15 ( que prevê a regulamentação do plantio de cannabis para fins medicinais e a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta) é vista por Borsato como um passo importante para facilitar o acesso ao cultivo medicinal e abrir novas oportunidades no mercado. "Com essa regulamentação viriam os registros de cultivares, defensivos e produtos extraídos das plantas aqui no país, envolvendo o MAPA, a Anvisa e até o Ibama. É uma enorme janela de oportunidades para diversas empresas", conclui.
Número de pedidos de habeas corpus para cultivo medicinal de cannabis cresce 4.100% em seis anos no Brasil
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) registrou um aumento expressivo de 4.100% no número de pedidos de habeas corpus para cultivo medicinal de cannabis entre 2018 e 2024. O salto, de apenas dois pedidos em 2018 para 82 até maio de 2024, reflete o crescimento da demanda por tratamentos com a planta.
A busca pelo autocultivo, segundo o advogado Ladislau Porto, que tem ampla experiência na área, tem aumentado, especialmente entre pacientes que procuram alternativas para produzir o próprio medicamento em casa. "Eu entendo que o autocultivo é algo diferente do mercado. A pessoa que busca isso, obviamente, não está comercializando, então, não vejo muito como um mercado", explica Porto.
Judicialização e regulamentação
O processo de judicialização tem sido o principal caminho para pacientes conseguirem autorização para o autocultivo da cannabis com fins terapêuticos. Embora a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) permita a importação de produtos derivados da planta desde 2015, como óleos e pomadas, o cultivo da planta in natura segue proibido. Ladislau Porto reforça o papel fundamental das decisões judiciais nesse cenário: "Nos últimos 10 anos de reconhecimento medicinal, o acesso à cannabis no Brasil sempre se deu principalmente via judicialização."
O advogado observa ainda que, mesmo empresas regulamentadas no setor utilizam o recurso judicial para garantir o acesso dos pacientes aos tratamentos, seja contra planos de saúde, seja pelo SUS: "Inclusive, muitas empresas regulamentadas utilizam esse caminho, via SUS e judicialização. Então, isso já é uma realidade."
Aumento gradual dos pedidos
A escalada de pedidos ao STJ foi gradual ao longo dos anos: em 2019, houve apenas um registro; em 2020, foram sete; e em 2021, o número subiu para dez. Já em 2022, 19 pedidos foram contabilizados, saltando para 70 em 2023. Até maio de 2024, o total de solicitações já chegava a 82. Esse aumento progressivo reflete a crescente busca de pacientes por soluções médicas através do auto cultivo, muitas vezes motivados pelos altos custos dos produtos importados.
Apesar dos custos elevados, especialmente relacionados aos honorários advocatícios, Ladislau Porto acredita que o número de pessoas buscando o cultivo próprio só tende a crescer: "Eu percebo que há uma tendência cada vez maior das pessoas quererem produzir o próprio remédio em casa, mas acho que isso não influencia muito o mercado porque não envolve comercialização, é uma questão de uso pessoal."
Justiça permite cultivo de cannabis para fins medicinais a estudante de baixa renda
Em abril deste ano, Vinícius Major, um jovem estudante de baixa renda, morador de São Carlos, São Paulo, conseguiu o habeas corpus preventivo para o cultivo de cannabis. A justiça o autorizou a plantar para a extração do óleo medicinal. Diagnosticado com epilepsia de difícil controle, Vinícius foi assistido pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, uma instituição que presta assistência jurídica gratuita para pessoas com renda familiar inferior a três salários mínimos.
Pedro Magalhães, defensor público responsável pelo caso, destacou a importância do autocultivo para pacientes como Vinícius, que não encontram solução nos tratamentos tradicionais. "O habeas corpus permite o cultivo da planta para a extração do óleo, sendo considerado, para muitas pessoas, o caminho para a salvação de suas vidas. Essas são pessoas que já passaram por diversos tratamentos tradicionais, com medicamentos convencionais, sem encontrar solução", explicou Magalhães.
Além das dificuldades médicas, o defensor ressaltou as barreiras financeiras enfrentadas por pacientes que precisam de medicamentos à base de cannabis. "Muitas vezes, elas não têm condições de enfrentar a burocracia ou comprar medicamentos caros, que, em alguns casos, não têm a qualidade ou concentração de óleo necessárias", disse Magalhães, destacando que o autocultivo surge como uma alternativa viável para quem não pode pagar por esses produtos.
Para Magalhães, o habeas corpus não só representa uma solução médica, mas também evita que pacientes sejam criminalizados. "Sem a autorização preventiva, a pessoa corre o risco de ser alvo de perseguição penal por um crime com penas muito altas, enfrentando sérios problemas na justiça criminal", afirmou. Ele destacou que o autocultivo, além de atender necessidades específicas dos pacientes, também oferece uma alternativa à burocracia e aos altos custos dos medicamentos disponíveis no mercado.
A Defensoria Pública tem desempenhado um papel crucial na garantia de direitos como o de Vinícius Major. "A Defensoria Pública é um dos caminhos para quem se enquadra nos critérios de atendimento, especialmente para pessoas economicamente vulneráveis. Se o critério de renda familiar for atendido, o indivíduo poderá receber uma das melhores assistências jurídicas gratuitas do país e do mundo", acrescentou Magalhães, frisando que o atendimento é facilitado tanto online quanto presencialmente.
Apesar da limitação socioeconômica para o atendimento, Pedro Magalhães destacou a importância da atuação dos núcleos estaduais da Defensoria Pública, que também trabalham em ações coletivas para atender um número maior de pessoas. "Eles trabalham de forma conjunta com os defensores locais, não apenas em casos individuais, mas também em ações coletivas, que podem beneficiar um número maior de pessoas e a coletividade como um todo", concluiu.
Advogado defende autocultivo de cannabis como alternativa de tratamento médico no Brasil
No Brasil, o mercado regulamentado de cannabis ainda não abrange o cultivo caseiro para pacientes que necessitam do uso medicinal da planta. Contudo, as ações judiciais vêm desempenhando um papel crucial na garantia desse acesso, e o autocultivo se destaca como uma alternativa cada vez mais importante para pacientes em busca de tratamento.
De acordo com Clayton Medeiros, advogado especializado em cannabis, o mercado regulado no Brasil ainda não permite o cultivo doméstico de cannabis para fins medicinais. "O que temos é uma omissão da Anvisa e do Ministério da Saúde, que deveria assumir a competência para regulamentar o cultivo caseiro de pacientes, conforme previsto no Decreto 5.912/2006", explica o advogado. Ele ressalta que, apesar de a regulamentação estar aquém, a decisão do Recurso Extraordinário 635.659 do Supremo Tribunal Federal (STF) trouxe critérios objetivos para diferenciar o usuário do traficante, o que deu coragem a alguns pacientes para cultivarem sua própria medicina.
"Com esse julgamento, alguns pacientes começaram a cultivar seu próprio remédio, mas ainda estão distantes de uma regulamentação formal por parte dos órgãos públicos", acrescenta Medeiros.
O papel das ações judiciais na medicina canábica
Ao longo dos últimos 10 anos de reconhecimento do uso medicinal da cannabis no Brasil, as ações judiciais desempenham papel essencial. "As ações judiciais fazem aquilo que o Estado deveria fazer: resguardar a saúde, a integridade física e a vida de todo cidadão", afirma Medeiros. Ele destaca que o Habeas Corpus, especialmente para o cultivo de cannabis, é uma ferramenta importante de proteção contra a criminalização da planta, que ainda sofre estigmas relacionados ao preconceito e elitização.
Medeiros também aponta o alto custo dos medicamentos à base de cannabis como um fator limitante para pacientes de baixa renda. "As ações judiciais podem garantir o fornecimento pelo SUS, o que acaba onerando financeiramente o Estado; outra alternativa são as ações em face dos planos de saúde e o fortalecimento das associações de pacientes", completa o advogado. Para ele, o histórico de luta por essas ações é uma busca pela democratização do acesso à cannabis.
Regras para o autocultivo no Brasil
No que tange às regras de autocultivo, Medeiros esclarece que o processo depende de uma série de requisitos, que variam conforme cada caso. "O básico é que o paciente tenha uma prescrição médica, esteja em tratamento com cannabis por pelo menos 4 meses, apresente laudo médico indicando a melhora, tenha autorização da Anvisa para importação, e um curso de cultivo e extração. Além disso, um laudo agronômico que indique a quantidade de plantas é importante", explica o advogado.
Ele enfatiza que, na maioria dos casos, o paciente já está cultivando cannabis, e as ações judiciais visam garantir que esse direito seja resguardado, evitando o risco de prisão por desobediência civil.
Habeas Corpus e a autonomia dos pacientes
O HC para o cultivo de cannabis representa uma conquista para os pacientes, pois permite o acesso a um tratamento sem depender exclusivamente da indústria farmacêutica. Medeiros afirma que o HC é "o acesso mais amplo e democrático", resultado de uma luta de vários setores da sociedade, incluindo pacientes, advogados, jardineiros, cientistas e militantes.
"A luta é séria e responsável. O paciente é quem deve decidir sobre seu tratamento, com base na prescrição médica, e não o Poder Judiciário", conclui Clayton Medeiros.
*Este material faz parte de uma série de reportagens especiais do portal Sechat, que explora a fundo o acesso aos medicamentos à base de cannabis no Brasil, seus desafios e as oportunidades de crescimento para o futuro.*