RDC 327 da Anvisa: como a regulamentação viabiliza o acesso à cannabis medicinal no Brasil
Entenda como a resolução ajuda a impulsiona as vendas de produtos à base de cannabis nas farmácias
Publicada em 28/11/2024
Imagem: Sechat
A relações-públicas Stela Meirelles, de 44 anos, enfrentou a insônia crônica durante muito tempo, um desafio comum a muitos brasileiros. Embora adormecesse rapidamente, a qualidade de seu sono era extremamente baixa. "Acordava todos os dias exausta", relembra ela. A recomendação médica foi decisiva para que ela iniciasse o tratamento com canabidiol, produto que ela adquiriu na farmácia logo após a consulta.
Após as primeiras doses, Stela percebeu uma mudança importante, seu sono deixou de ser superficial e, mesmo dormindo por poucas horas, ela passou a sentir-se revigorada. Hoje, o uso do canabidiol tornou-se esporádico, sendo adotado em dias de agitação ou ansiedade intensa. "A melhora no sono foi de 100%," avalia Stela, que vê o produto como um recurso essencial para seu bem-estar.
A experiência de Stela reflete os avanços proporcionados pela RDC 327/2019, criada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Em vigor desde 2020, a resolução oferece um marco regulatório para comercialização de produtos à base de cannabis no Brasil, simplificando o acesso ao tratamento e garantindo maior segurança aos pacientes.
Origem e objetivos da RDC 327
A RDC 327 surgiu em um cenário de crescente demanda por produtos à base de cannabis, impulsionado por avanços científicos internacionais. Países como Canadá, Estados Unidos e Israel já demonstravam os benefícios terapêuticos dos canabinoides no tratamento de condições como epilepsia, dor crônica, ansiedade e insônia.
No Brasil, o acesso à cannabis medicinal era, até então, limitado às importações, que, devido aos entraves da época, implicavam custos elevados e longos prazos de espera para que os produtos chegassem aos pacientes. Vale destacar também a atuação das associações, que, embora pioneiras, enfrentavam grandes desafios para garantir a padronização e a regularidade dos produtos oferecidos.
A RDC 327 foi elaborada para preencher essa lacuna, permitindo que medicamentos derivados de cannabis fossem disponibilizados em farmácias mediante prescrição médica. A norma trouxe requisitos rigorosos para fabricação, importação e comercialização, garantindo que os produtos atendam aos mesmos padrões de qualidade e segurança aplicados a outros medicamentos controlados.
Impacto no mercado e expansão de opções terapêuticas
Desde sua implementação, a RDC 327 tem sido um divisor de águas no mercado brasileiro de cannabis medicinal. Até o momento, 23 empresas obtiveram autorização para comercializar produtos, resultando em um portfólio de 41 medicamentos disponíveis em farmácias, com outros 35 aguardando aprovação pela agência sanitária. Vale lembrar ainda que, de acordo com o anuário da Kaya Mind 2024, existem hoje no país cerca de 200 mil pacientes que optaram por essa forma de acesso.
O mercado também apresenta números promissores. Em 2024, o faturamento das vendas de produtos à base de cannabis em farmácias ultrapassou os R$ 320 milhões. Outros dados fornecidos pela Close Up, indicam que cerca de 674 mil unidades de produtos de cannabis foram comercializadas no país desde a regulamentação, com mais de 288 mil prescrições médicas emitidas.
Esses produtos, disponíveis em diferentes concentrações de canabinoides como CBD e THC, atendem a uma ampla variedade de condições clínicas. Soluções em óleos são as formas mais comuns, mas há possibilidade de expansão para cápsulas, sprays e outros métodos de administração.
"A expectativa é que, com o tempo, a regulamentação abranja não apenas o cultivo nacional, mas também novas formas de administração, o que beneficiaria ainda mais os pacientes e impulsionaria o mercado nacional", afirma o Dr. Paulo Vítor dos Santos, médico com amplo conhecimento em terapia canabinoide.
Avanços e desafios regulatórios
Embora a RDC 327 tenha ampliado o acesso, ainda há barreiras a serem superadas. Durante a 3ª edição do Congresso Brasileiro de Cannabis Medicinal (CBCM), o gerente da Anvisa, João Paulo Perfeito, destacou que o cenário medicinal permanece limitado, com poucas condições oficialmente reconhecidas para tratamento com cannabis.
Atualmente, os produtos disponíveis são frequentemente utilizados para epilepsias refratárias, síndrome de Dravet, síndrome de Lennox-Gastaut e esclerose tuberosa, além de outras condições avaliadas caso a caso pelo médico. Segundo Perfeito, há uma necessidade urgente de expandir o rol de patologias tratáveis e permitir maior variedade de produtos com concentrações superiores a 0,2% de THC, especialmente para casos que necessitam de doses mais elevadas do canabinoide.
Outro ponto destacado no evento foi a ausência de cultivo nacional regulamentado, que limita a redução de custos para os pacientes e a independência do mercado brasileiro em relação às importações.
O Superior Tribuna de Justiça fixou, em novembro, um prazo de 6 meses para que o Governo Federal e os órgãos competentes desenvolvam uma ação coordenada para regulamentar o cultivo de cannabis para fins medicinais e farmacêutico no Brasil.
Segurança e personalização no tratamento
Uma das características da RDC 327 é a segurança proporcionada pela padronização dos produtos. A médica Marianna Laíze Santos, coordenadora do projeto Beija-flor em Búzios/RJ, que assegura o acesso ao tratamento canábico para pacientes com baixa condição financeira, enfatiza:
"A regulamentação garante que os medicamentos sigam critérios de qualidade comparáveis aos de qualquer outro medicamento controlado, minimizando oscilações terapêuticas que eram comuns em produtos adquiridos fora desse sistema."
Esse rigor permite que os médicos personalizem as prescrições de acordo com o quadro clínico de cada paciente. Para acessar os medicamentos, é necessária uma receita especial de controle especial, e o acompanhamento contínuo garante que os ajustes sejam feitos conforme a resposta ao tratamento.
Futuro do mercado de cannabis medicinal no Brasil
Com a RDC 327, o Brasil dá passos importantes na consolidação de um mercado medicinal robusto e acessível. Especialistas apontam que a regulamentação do cultivo e produção nacional será essencial para tornar os tratamentos mais acessíveis, reduzindo custos e fomentando o desenvolvimento econômico no setor.
Enquanto isso, a regulamentação atual já trouxe avanços significativos, promovendo não apenas o acesso, mas também a segurança e eficácia nos tratamentos. A história de Stela e de muitos outros pacientes reforça o potencial transformador da cannabis medicinal e a importância de um sistema regulatório que priorize a saúde e o bem-estar da população.