Inflamação, canabinoides e COVID
Em mais um artigo para o Sechat, o neurocientista Stevens Rehen trata do efeito já comprovado dos canabinoides na redução de distúrbios inflamatórios, ao mesmo tempo que defende a necessidade da realização de mais pesquisas para a melhor compreensão
Publicada em 11/05/2021
Coluna de Stevens Rehen, com a colaboração de Luiz Hendrix*
Endocanabinoides são moléculas de natureza lipídica produzidas pelo corpo humano, incluindo a anandamida e o 2-araquidonoilglicerol (2-AG), que se ligam aos receptores canabinoides CB1 e CB2 presentes em células do cérebro, principalmente nas regiões responsáveis pela emoção, cognição, apetite e coordenação motora e também no sistema imunológico, intestino e outros tecidos periféricos.
Podemos considerar os receptores celulares como fechaduras espalhadas pelo cérebro e o corpo, e, no caso específico, onde os endocanabinoides se ligam como chaves para produzir respostas fisiológicas marcantes.
Podemos considerar os receptores celulares como fechaduras espalhadas pelo cérebro e o corpo, e, no caso específico, onde os endocanabinoides se ligam como chaves para produzir respostas fisiológicas marcantes. Juntamente com os receptores CB1 e CB2 e enzimas que controlam suas quantidades, eles formam o sistema endocanabinoide. O sistema endocanabinoide regula, por exemplo, a transmissão de neurotransmissores no cérebro. No sistema imunológico possui efeitos imunomoduladores.
A planta Cannabis sativa é rica em centenas de fitocanabinoides, incluindo canabidiol (CBD) e tetra-hidrocanabinol (THC). Ambos se ligam aos mesmos receptores CB1 e CB2 e são responsáveis por boa parte dos efeitos terapêuticos da cannabis estudados em seres humanos. Outros efeitos da cannabis dependem de terpernoides, flavonoides e demais substâncias.
A habilidade do THC em se ligar ao CB1 explica seus efeitos psicotrópicos, mas não esclarece algumas de suas ações periféricas que dependeriam do CB2, o segundo receptor canabinoide distribuído pelo corpo humano. O THC pode ainda inibir a fagocitose de macrófagos, célula crucial para o processo inflamatório.
A habilidade do THC em se ligar ao CB1 explica seus efeitos psicotrópicos, mas não esclarece algumas de suas ações periféricas que dependeriam do CB2, o segundo receptor canabinoide distribuído pelo corpo humano. O THC pode ainda inibir a fagocitose de macrófagos, célula crucial para o processo inflamatório. O CBD também é capaz de disparar respostas anti-inflamatórias, reduzindo os níveis das citocinas IL-6 e IL-8. Essas e outras evidências ratificam o potencial dos fitocanabinoides na regulação de processos imunológicos, como a inflamação, resposta natural do corpo contra danos causados por agentes externos e internos.
A resposta imunológica, incluindo a inflamação, é importante para a defesa do organismo. Porém, no longo prazo, um processo inflamatório crônico pode ser extremamente nocivo.
A resposta imunológica, incluindo a inflamação, é importante para a defesa do organismo. Porém, no longo prazo, um processo inflamatório crônico pode ser extremamente nocivo. São muitas as doenças associadas a respostas inflamatórias exacerbadas, incluindo as neurodegenerativas como Alzheimer e Parkinson.
Cientistas e médicos identificaram que uma das consequências mais graves da COVID-19 é a inflamação severa nos pulmões. O Sars-Cov-2 utiliza o receptor ECA2 como principal porta de entrada nas células, onde se multiplica. A progressão da COVID-19 é caracterizada por uma resposta imunológica bifásica. A primeira fase é diretamente ligada à invasão do coronavírus. A segunda, a inflamatória, acontece mesmo após a redução da carga viral. O corpo reage à infecção com uma resposta inflamatória que pode danificar o tecido pulmonar, gerando cicatrizes e acúmulo de líquido. Como consequência, há redução da passagem de oxigênio dos pulmões para a corrente sanguínea. Em alguns pacientes, o processo inflamatório deflagra ainda uma “tempestade de citocinas” incluindo IL-6, IL-8, TNFα e CCL2.
Um estudo publicado na revista Scientific Reports, liderada pelo cientista Hinanit Koltai, sugere que componentes da cannabis podem ajudar a reduzir a inflamação de células pulmonares afetadas pela COVID-19.
Seguindo a analogia com uma tempestade, podemos dizer que o derramamento inflamatório pode “alagar” o organismo, interferindo nos mecanismos de defesa, podendo causar danos permanentes e óbito.
Um estudo publicado na revista Scientific Reports, liderada pelo cientista Hinanit Koltai, sugere que componentes da cannabis podem ajudar a reduzir a inflamação de células pulmonares afetadas pela COVID-19. Foram identificadas combinações de canabinoides com a atividade anti-inflamatória em células epiteliais do pulmão e sobre a atividade fagocítica de macrófagos em laboratório.
Pouco se sabe sobre o efeito da combinação de canabinoides sobre a inflamação de células epiteliais alveolares e imunológicas. A partir do fracionamento por cromatografia líquida em coluna de um extrato puro de uma cepa de Cannabis sativa, os pesquisadores isolaram duas frações, uma rica em CBD (FCBD) e a outra em THC (FTHC). No laboratório, o FCBD reduziu a produção de IL-8 e IL-6 pelas células epiteliais alveolares, proteínas presentes nos pacientes graves com COVID-19. Além do CBD, o FCBD continha outros canabinoides, incluindo CBG e THCV.
Os pacientes graves de COVID-19 também possuem aumento na produção de moléculas inflamatórias, como CCL2 e CCL7. Além de reduzir os níveis de IL-6 e IL-8, a FCBD reduziu os níveis de CCL2 e CCL7 em células epiteliais alveolares. Já foi demonstrado que CCL2 é abundante no fluido broncoalveolar de pacientes graves de COVID-19, além de associado ao recrutamento de monócitos para os pulmões. Os resultados sugerem que a FCBD pode reduzir a secreção de moléculas pró-inflamatórias associadas à doença e, possivelmente, a uma redução do recrutamento de macrófagos durante a tempestade de citocinas.
Nos testes de laboratório, a dexametasona, um anti-inflamatório esteroide, se mostrou mais eficaz do que a FCBD na redução da expressão de CCL2 e CCL7. Por outro lado, os pesquisadores também demonstraram que a FCBD reduziu o nível de expressão de ECA2, mais do que a dexametasona. Este resultado é importante porque o aumento de ECA2 elevaria os níveis de bradicinina em vários tecidos, aumento de permeabilidade vascular e hipotensão, sendo que esse último sintoma associado a pacientes COVID-19 graves. É importante mencionar que a redução da expressão de ECA2 deve ser considerada com cautela, pois há vantagens e desvantagens nessa diminuição. O grupo descreveu que a FCBD aumentou a polarização de macrófagos e a remodelação da actina celular que corresponde ao crescimento de estruturas de membrana semelhantes a filopódios. Os macrófagos alveolares desempenham um papel importante durante infecções virais agudas e na depuração mediada por fagocitose de infecções virais respiratórias. A FCBD elevou a capacidade fagocítica dos macrófagos. A presença de terpenos em FCBD pode ser responsável por esse efeito.
Por mais que o estudo indique que os canabinoides são efetivos na redução de distúrbios inflamatórios, mais pesquisas sobre o potencial terapêutico da cannabis especificamente em pacientes com COVID-19 são necessárias.
Os pesquisadores sugerem que a combinação dos canabinoides CBD, CBG e THCV tem potencial clínico na redução da secreção de citocinas, enquanto a adição de terpenos ativaria a fagocitose por macrófagos.
Por mais que o estudo indique que os canabinoides são efetivos na redução de distúrbios inflamatórios, mais pesquisas sobre o potencial terapêutico da cannabis especificamente em pacientes com COVID-19 são necessárias. Os pesquisadores israelenses também alertam que a FCBD com terpenos aumentou os níveis de citocinas, o que poderia até mesmo agravar as consequências da "tempestade de citocinas" da COVID-19 grave. Até que novas pesquisas sejam realizadas, o uso de canabinoides para prevenção ou tratamento do COVID-19 não é recomendada.
*Stevens Rehen é neurocientista e colunista do Sechat.
As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e não correspondem, necessariamente, à posição do Sechat.
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