Excluir associações de cannabis é negar justiça social, diz Schramm
Em entrevista, a advogada Raquel Schramm critica decreto de SC que exclui associações de cannabis e alerta para riscos jurídicos e sociais da medida
Publicada em 13/06/2025

“Reconhecer o trabalho das associações é fazer justiça social”, afirma a advogada Raquel Schramm | Divulgação
Em uma casinha simples no interior de Santa Catarina, uma mãe suspira aliviada cada vez que pinga as gotinhas do óleo de cannabis na boca do filho. O alívio vem devagarinho, mas vem. E não é só pelo controle das crises, é também pela dignidade de poder cuidar com o que nasce perto de casa, cultivado com afeto, por quem conhece as dores e lutas dos pacientes. Agora, com a nova regulamentação do governo catarinense, esse cuidado tão próximo parece ter sido deixado de lado.
O Decreto 988/2025, publicado em março de 2025 pelo governo de Santa Catarina, estabelece as diretrizes para a aplicação da lei que inclui a cannabis medicinal no Sistema Único de Saúde (SUS) estadual.
A norma, que deveria representar um avanço para pacientes e famílias, tem sido alvo de críticas por limitar a aquisição de medicamentos apenas aos produtos com registro na Anvisa, o que, na prática, exclui as associações locais, como a Santa Cannabis, que há anos atua na linha de frente da saúde canábica no estado.
“Não acredito que tenha havido má-fé ou intenção política”, diz a advogada Raquel Schramm, criminalista e especialista em ciências criminais. Ela é presidente da Comissão de Políticas de Drogas da OAB-SC e membro da Rede Reforma, que reúne juristas e ativistas pelo fim da guerra às drogas. “Mas o decreto, ao exigir expressamente que os medicamentos sejam registrados na Anvisa, desconsidera toda uma cadeia de produção socialmente construída, que gera emprego, renda e, acima de tudo, acesso ao tratamento”.
Na avaliação da especialista, o artigo 8º do decreto representa o maior entrave. “Não existe regulamentação específica no Brasil para que associações tenham seus produtos registrados na Anvisa. Com isso, cria-se um funil que beneficia apenas grandes empresas estrangeiras, enquanto as entidades locais, que têm autorização judicial e histórico de atendimento aos pacientes, ficam de fora”, explica.
Além disso, Raquel alerta para os riscos jurídicos da medida: “A exclusão pode comprometer o acesso dos pacientes aos medicamentos. Temos exemplos de outros estados, como São Paulo, onde a busca pelo SUS foi pequena, o investimento foi alto e os pacientes continuaram recorrendo às associações ou até ao próprio cultivo doméstico, via habeas corpus preventivo”, exemplifica a advogada.
Mas, qual seria a solução?

Segundo a advogada, um caminho possível seria a alteração do artigo 8º, retirando a exigência do registro na Anvisa para permitir a participação das associações com autorização judicial. “Elas já têm laudos que comprovam a qualidade dos produtos. Reconhecê-las é também reconhecer a história de luta e de cuidado que elas construíram no território”.
Outro ponto que preocupa é a ausência de prazos e protocolos para que a política pública de fato funcione. “Hoje temos um decreto que cria uma comissão, mas não diz quando ou como os medicamentos serão distribuídos. Enquanto isso, os pacientes seguem esperando”, afirma Raquel.
A Comissão de Políticas de Drogas da OAB-SC, segundo ela, está acompanhando os desdobramentos. “Ainda não há um parecer institucional, mas, caso provocada, a Comissão pode atuar com pareceres jurídicos para apoiar uma reformulação que inclua, de fato, quem sempre esteve ao lado dos pacientes”.
Vozes que resistem
A Santa Cannabis, uma das associações que segue ativa e atuante em SC, continua produzindo óleos, pomadas e capacitando cultivadores. Mas agora, com o decreto em vigor, o sentimento é de que um trabalho construído a muitas mãos, e muitas histórias, foi invisibilizado.

Para Pedro Sabaciauskis, fundador da Santa Cannabis, a exclusão das associações foi recebida com surpresa. “A lei aprovada na Alesc contempla o fornecimento via associações sem fins lucrativos, e essa é a melhor opção para o Estado. Toda a verba investida ficaria aqui, gerando emprego e renda. Ao priorizar medicamentos de fora, o governo fortalece a indústria estrangeira, enfraquece a produção local e coloca os pacientes em situação de vulnerabilidade, dependendo de um remédio cotado em dólar”, afirma.
Ele ainda destaca que há diálogo com o governo estadual, e que a associação está disposta a colaborar com uma proposta plural: “Queremos construir uma parceria com o Estado, universidades e sociedade civil, mostrando que é possível garantir um fornecimento local, seguro e soberano aos catarinenses”, afirma em entrevista ao Sechat.
Regulamentação da Cannabis
A RDC 660/2022 da Anvisa regulamenta a importação excepcional de produtos derivados de cannabis, mediante prescrição médica, para uso individual. Essa resolução permite que pacientes brasileiros acessem medicamentos importados contendo canabinoides, com autorização prévia da Anvisa, sem que o produto esteja registrado no Brasil. O processo é voltado ao paciente e à prescrição, sendo comum em casos onde não há produtos disponíveis no mercado nacional.
Já a RDC 327/2019 estabelece as normas para a comercialização de produtos à base de cannabis nas farmácias brasileiras. Ela define critérios técnicos rigorosos de qualidade, segurança, rotulagem, armazenagem e controle sanitário, exigindo, entre outros pontos, que os produtos sejam fabricados sob Boas Práticas de Fabricação (BPF) e tenham certificação de qualidade internacional.
Na prática, o modelo previsto na RDC 327/2019 é acessível apenas a empresas com capacidade industrial avançada, alto investimento e estrutura técnica compatível com os padrões exigidos pela Anvisa. Isso cria uma barreira significativa para associações de pacientes e pequenos produtores, que ficam fora desse mercado regulado, apesar de atuarem no fornecimento de produtos à base de cannabis a milhares de brasileiros.
Em 2025, a Anvisa mantém a RDC 327/2019 em fase de revisão, por meio da Consulta Pública n.º 1.193/2024, mas as associações e seus modelos de produção artesanal não foram incluídos no escopo dessa revisão. Ou seja, mesmo com a reavaliação da norma, a regulamentação continua restrita a grandes empresas, mantendo fora do processo os grupos que há anos vêm garantindo o acesso à cannabis medicinal por meio de decisões judiciais e autorizações especiais.
Associações como a Santa Cannabis, embora legalizadas judicialmente para o cultivo e a produção artesanal para seus associados, não conseguem registrar seus produtos na Anvisa por falta de uma categoria regulatória específica para esse modelo de produção.
Essa lacuna reforça a exclusão apontada pelos especialistas e acende o alerta para a urgência de uma regulamentação mais inclusiva e compatível com a realidade brasileira.
Raquel finaliza com uma reflexão: “Mais do que uma questão jurídica, é uma questão de justiça social. Usar os produtos catarinenses em detrimento aos importados é reconhecer o valor de quem está no chão da luta”.