O que a possível revogação da RDC 660 pode significar para mais de 200 mil famílias no Brasil?

Veja a história de uma paciente que chegou a ter o tratamento interrompido por condições financeiras

Publicada em 23/10/2024

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Imagem ilustrativa | Freepik

Uma jovem chamada Izabel dos Santos Silva, 23 anos, contou o impacto positivo do tratamento com canabidiol na saúde de sua mãe, que enfrentou uma condição médica difícil. Segundo a estudante, sua mãe iniciou a terapia canabinoide há 10 meses, o que resultou em uma transformação satisfatória no comportamento e na qualidade de vida da paciente.

Izabel disse que, antes do uso dos derivados da planta com benefícios medicinais, sua mãe apresentava descontrole de temperamento, dificuldade em compreender situações cotidianas e realizar tarefas básicas. A partir do início do tratamento os sintomas começaram a melhorar de forma gradual, com destaque para a melhoria na qualidade do sono. "Hoje em dia ela dorme magnificamente bem, antes ela passava a noite irritada, levantando várias vezes", afirma.

Além disso, Izabel relatou que o canabidiol trouxe estabilidade emocional, melhorando o humor e a comunicação de sua mãe. “Ela consegue socializar, compreender comandos simples, algo que antes era muito difícil de acontecer”, lembrou. A filha destacou também a melhora nos níveis de irritabilidade e a redução de comportamentos agressivos que eram difíceis antes do uso do óleo.

O tratamento, conforme a prescrição médica, é feito com produtos importados que podem ser adquiridos por meio de autorização da Anvisa válida por dois anos como garante a RDC 660/2022. Além do óleo de canabidiol, o paciente utiliza uma goma com THC (a Anvisa permite o uso do tetraidrocanabinol (THC) em medicamentos no Brasil, mas impõe um limite máximo de concentração de 0,2% para produtos de venda regular, exceto em casos de pacientes terminais, onde essa restrição não se aplica.), à noite, o que contribui ainda mais para a estabilidade do sono. Izabel também enfatizou a importância do custo-benefício do tratamento em relação aos produtos vendidos nas redes de farmácia e drogarias, que, apesar de não ser barato para as condições financeiras dela, proporciona resultados duradouros e eficazes, diferentemente de outros medicamentos que foram testados ao longo dos anos.

No Brasil, o uso de produtos à base de cannabis continua em expansão. De acordo com o Anuário da Cannabis da Kaya Mind 2023, há atualmente 219 mil pacientes que importam produtos via RDC 660. O cenário também é positivo para o setor empresarial, que conta com 600 empresas participantes na importação desses produtos, além de 12 mil médicos prescritores.

Em relação às autorizações concedidas pela Anvisa, o número apresenta variações nos últimos anos. Em 2022, foram liberadas 80.413 autorizações. Em 2023, o total subiu para 136.754. Contudo, o último fechamento de 2024 somou 75.852 autorizações para importação via RDC 660.

 

A revogação da RDC 660 poderia impactar a saúde dos pacientes

 

Após o Sindusfarma protocolar um ofício à Anvisa solicitando a revogação da RDC 660/2022, surgiram inúmeras interrogações, especialmente em um cenário em que milhares de pacientes poderiam ter seus tratamentos comprometidos.

 

Veja os motivos pelos quais o Sindusfarma solicita a revogação da RDC 660:


Falta de atendimento aos critérios de segurança e qualidade: A RDC 660, segundo o Sindusfarma, não atende especificamente às diretrizes de segurança e qualidade estabelecidas pela Anvisa.

Risco à saúde pública: Uma entidade que alega que uma norma pode resultar em riscos potenciais à saúde da população ao comprometer a eficácia e segurança dos produtos derivados da cannabis.

Controle de qualidade inadequado: O Sindusfarma argumenta que a resolução não estabelece diretrizes rigorosas o suficiente para garantir o controle de qualidade dos produtos de cannabis importados.

Preferência pela RDC 327: O sindicato acredita que a RDC 327, de 2019, que regulamenta a fabricação e comercialização de produtos de cannabis, deve ser o regulamento principal a ser seguido, garantindo que os produtos de cannabis para uso medicinal tenham sua qualidade devidamente atestada pela Anvisa.

Preocupação com o mercado: A organização busca garantir que o acesso aos medicamentos derivados de cannabis seja feito de forma controlada e segura, sem risco à saúde pública.

 

A psiquiatra Ana Hounie fez um contraponto ao posicionamento do Sindusfarma e destacou que a RDC 660/2022 permite uma ampla variedade de formulações com preços mais acessíveis, além de oferecer alternativas terapêuticas que atualmente não estão disponíveis no mercado nacional.

A médica ressaltou que, caso a resolução seja suspensa, os impactos serão sentidos diretamente na vida de milhares de brasileiros que oferecem essas opções para seus tratamentos.

"A extinção da 660 é um pesadelo para milhares de pacientes. Os produtos importados são muito mais variados em termos de formulação farmacêutica, atendendo a uma gama maior de pacientes e a preços menores do que os que estão nas farmácias. Existem muitas empresas sérias que nos exportam produtos, com cromatografia lote a lote, coisa não prevista na RDC 327. O médico precisa ter liberdade e a possibilidade de escolher o produto que atende às necessidades de seu paciente, não limitar-se apenas a produtos ricos em CBD", afirma Hounie.

“A única forma de revogar a RDC 660 sem prejudicar os pacientes é se a RDC 327 oferecer os mesmos fitocanabinoides pelo mesmo custo das marcas importadas, o que sabemos ser inviável enquanto o cultivo não for permitido em nosso país”, afirma Gabriela Mânica, médica geriatria.

Segundo ela, apesar das marcas importadas não terem um controle direto de qualidade pela Anvisa, muitas delas disponibilizam certificados de análise, permitindo que os médicos garantam a qualidade dos produtos para seus pacientes.

“Hoje, acompanhando mais de 800 pacientes em uso de cannabis medicinal, posso afirmar que a maioria não teria condições de arcar com os custos do tratamento se comprados diretamente nas farmácias brasileiras. Além disso, muitos prejuízos por utilizarem outros fitocanabinoides além de CBD e THC, que ainda não estão disponíveis no Brasil.”

Gabriela Mânica destaca que, apesar da qualidade das opções disponíveis no Brasil, não vê motivos para retirar a autonomia de prescrição de produtos importados. “Isso certamente traria prejuízo aos pacientes.”

 

Bastidores da cannabis

 

Nos bastidores da cannabis medicinal no Brasil, a discussão gira em torno das consequências caso a RDC 660 seja revogada de fato. Partindo dessa linha, a crítica é que a nova resolução não promoveu o esperado incentivo à pesquisa clínica. Na prática, o que se vê é uma tentativa de criar reserva de mercado, que historicamente gera prejuízos para a população brasileira. A proibição da entrada de produtos de cannabis fabricados fora do país também é vista como um obstáculo ao desenvolvimento do setor.

Veja como o tema chegou a ser questionado: "Três meses antes da votação e publicação da RDC 327, a proposta apresentada à Anvisa era de mera notificação, permitindo que todos os produtos importados pela RDC 660 se qualificassem imediatamente para importação e venda em farmácias, sem nenhuma exigência extra".  

De acordo com um empresário do setor, a Anvisa tenta estabelecer a 327, afirmando que isso incentivaria a pesquisa clínica, mas essa justificativa é amplamente contestada. A justificativa da Anvisa para a nova norma alega que ela visa aumentar a segurança e a qualidade dos produtos, mas especialistas destacam que as exigências brasileiras do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas - CBPF e de estudos de estabilidade são mais rigorosas do que os padrões internacionais. “O Brasil deveria ter criado um mercado medicinal, e não um mercado farmacêutico”, afirmou.

O atual cenário das discussões apontam para uma mudança nas regras atuais, algo que deve impactar diretamente as empresas que atuam na RDC 660.  Na opinião de empresários do setor, essa pressão pela revogação da resolução privilegiaria um monopólio e restringe o acesso a produtos de cannabis, que poderiam, inclusive, ser vendidos sem receita médica, como é prático em outros países. E, no fim das contas, o impacto maior será refletido nas famílias que buscam por saúde.