Trump redefine mercado de cânhamo: entre a regulação farmacêutica e a arrecadação federal
Especialistas analisam o cenário e destacam que a medida atende às expectativas da Anvisa para o mercado brasileiro; Análise revela que nova legislação não representa proibição, mas sim reestruturação do setor com foco em tributação e controle farmacêutico
Publicada em 14/11/2025

Imagem Ilustrativa: Canva Pro
O presidente Donald Trump sancionou uma legislação que, na prática, reformula completamente o mercado de cânhamo nos Estados Unidos. Inserida no projeto de lei que encerrou a mais longa paralisação do governo norte-americano, a medida altera profundamente a definição de cânhamo estabelecida pela Farm Bill de 2018, em um movimento que especialistas interpretam não como retrocesso, mas como sofisticação regulatória com objetivos fiscais e farmacêuticos claros.
A Mudança Técnica com Impacto Bilionário
A alteração central está na redefinição do parâmetro de THC. Enquanto a Farm Bill de 2018 considerava apenas o delta-9 THC como referência, a nova legislação amplia o conceito para "THC total", incluindo THCA, delta-8 THC e outros isômeros. Além disso, estabelece um limite rígido de 0,4 mg de THC total por embalagem, independentemente do tipo de produto.
Na prática, isso torna ilegais diversos produtos que circulam livremente desde 2018, especialmente flores com concentrações acima de 0,3% de THC, produtos de CBD de amplo espectro e canabinoides sintéticos como o delta-8 THC produzido a partir do CBD.
A FDA terá 365 dias para definir as diretrizes de rotulagem a partir da data de publicação, testes laboratoriais e o conceito de "embalagem" para fins de fiscalização — um período de transição que será determinante para a sobrevivência de empresas no setor.
A Interpretação Estratégica: Legalização Disfarçada de Restrição
Para Corina Silva, CEO da USA Hemp Pharmaceuticals, o movimento era previsível e está longe de representar um retrocesso. "Eu já esperava que isso iria acontecer. Desde que a Farm Bill foi criada, já se imaginava esse movimento. A recomposição regulatória em torno do delta-8, do HHC e de outros canabinoides derivados era questão de tempo", afirma.
A análise de Silva vai além da superfície regulatória. Ela identifica dois vetores principais por trás da legislação: o interesse da indústria farmacêutica em patentear moléculas específicas e a necessidade do governo federal de ampliar sua capacidade de arrecadação.
"Na base do CBD, não deve mudar muito. O que deve acontecer é uma fiscalização muito mais rígida para flores acima de 0,3% de THC, HHC e outros derivados da cannabis. É um primeiro passo para que os canabinoides passem a ser tratados em grau farmacêutico e com possibilidade de patente", explica a executiva.
O Jogo das Patentes e o Interesse Farmacêutico
Um dos pontos mais reveladores da análise de Silva diz respeito à estratégia da indústria farmacêutica. "Hoje a planta não pode ser patenteada porque é um extrato natural. Mas quando afunilam as definições — o que é CBD, o que é THC, como se isola cada composto — a indústria farmacêutica consegue justificar seu movimento de patentear moléculas. Esse é o indício claro de que o mercado não volta mais atrás."
A executiva é ainda mais direta sobre as intenções do setor farmacêutico: "Os canabinoides estão sendo sintetizados exatamente para isso: quando eu isolo e defino cada produto, posso patentear. A indústria farmacêutica está de olho nisso há muito tempo; agora, simplesmente colocou o pé na porta."
Essa leitura sugere que a nova legislação não é um obstáculo ao mercado de cannabis, mas sim uma reconfiguração que favorece grandes players com capacidade de investimento em pesquisa, desenvolvimento e patenteamento de moléculas específicas.
Tributação Federal: O Objetivo Não Declarado
Silva é categórica ao identificar o principal motor da mudança legislativa: "É possível analisar em detalhes a lei, mas o ponto central é que os Estados Unidos têm hoje um grande objetivo: arrecadar impostos."
A executiva explica que produtos de cânhamo não podem ser tributados da mesma forma que a maconha de uso adulto devido às particularidades das legislações estaduais. "Mas, a partir do momento em que você cria uma lei federal, passa a ser possível cobrar impostos. Esse controle é mais uma forma de taxação."
Essa leitura econômica da medida é reforçada por sua conclusão: "Hoje entram verbas para estudos, mas o movimento real é de preparação para a indústria farmacêutica."
Legalização Estruturada, Não Proibição
Contrariando a narrativa inicial de "retrocesso", Silva oferece uma interpretação oposta: "O que está acontecendo não é um movimento para proibir; é um movimento para legalizar, regulamentar e, a partir disso, cobrar impostos."
Para a executiva, a movimentação é resultado de uma convergência de interesses. "Essa movimentação vem tanto da indústria farmacêutica quanto do governo, que sabe que pode arrecadar milhares de dólares."
Impacto no Mercado: Seleção Natural Regulatória
Quanto aos efeitos práticos no setor, Silva prevê uma espécie de "limpeza" no mercado. "O impacto na 660 será elevar a régua. Empresas que entraram só para ganhar dinheiro, sem seguir padrões mínimos exigidos pelo FDA, não vão sobreviver."
A executiva vê o movimento como positivo para a maturação do setor: "É uma adequação necessária, alinhada com o que a Anvisa já espera e com o que os EUA estão exigindo. Haverá uma grande limpeza no mercado — marcas sem qualidade ficarão pelo caminho. Para o Brasil, isso será muito importante, porque ajuda a igualar e qualificar o mercado da RDC 660."
O prazo de um ano para adequação funcionará como período de seleção natural, onde apenas empresas com estrutura, qualidade e conformidade regulatória conseguirão permanecer no mercado.
Reações do Setor: Cautela e Mobilização
A postura geral do setor tem sido de cautela estratégica. Christiani Di Risio, diretora-geral da Earth Wellness, afirma: "Nosso posicionamento no momento é de cautela estratégica. É precipitado qualquer consideração neste momento. Não estamos diante de um ato específico do governo e sim de uma articulação que deve ser acompanhada com muita atenção."
A Sociedade de Clínicos de Cannabis (SCC) adotou uma postura mais proativa, recomendando que produtores e consumidores se manifestem junto aos seus representantes, apresentando dados sobre empregos, arrecadação e benefícios terapêuticos relacionados aos produtos de cânhamo.
Alerta para o Brasil: Soberania e Independência
Para o Dr. Wilson Lessa, psiquiatra e vice-presidente da AMBCANN (Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia), o cenário americano deve servir como alerta estratégico para o Brasil. "Essa incerteza quanto ao futuro dos produtos de cânhamo nos EUA, no mínimo, deveria sensibilizar a sociedade brasileira quanto à necessidade de fortificar as associações de pacientes e regulamentar o cultivo e licenças para pequenos agricultores familiares em um modelo de cooperativa, como vem sendo feito no Marrocos, para dependermos cada vez menos dos humores políticos de outros países."
A observação de Lessa toca em um ponto estratégico: a dependência brasileira de produtos importados expõe o país a oscilações regulatórias internacionais que podem comprometer o acesso de pacientes a tratamentos.



