Paraguai é destaque em primeiro evento da cannabis organizado pela ONU
Terceiro maior produtor de cânhamo industrial do mundo dá exemplo de como agregar captura de CO2, geração de emprego e renda para os mais pobres e produtos certificados.
Publicada em 11/05/2022
Por Manuela Borges
Enquanto no Brasil a Medical Cannabis Fair reuniu centenas de especialistas, pacientes, empreendedores e interessados no assunto em São Paulo, do outro lado do mundo, em Nova York - praticamente simultaneamente - a Organização Nacional das Nações Unidas (ONU) promoveu, pela primeira vez, um evento sobre a cannabis. O Regenerative Cannabis Live reuniu no fórum mais de 30 palestrantes de todas as partes do planeta. E um dos países que mais chamou a atenção faz fronteira com o Brasil.
O nosso vizinho Paraguai - com mais de 26% da população na linha da extrema pobreza - tem demonstrado ao mundo que é possível reverter essa estatística através do cultivo da cannabis de forma regulamentada e legal. Para fechar o evento da ONU nos Estados Unidos, o ministro da Agricultura do Paraguai, Moisés Bertoni e o presidente da Câmara do Cânhamo Industrial do Paraguai (CCIP), Marcelo Demp, relataram às demais nações como o modelo paraguaio tem reduzido a pobreza e a criminalidade através de investimento público, capacitação e compra antecipada da matéria-prima de pequenos produtores que antes cultivavam na ilegalidade.
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Atualmente, o Paraguai já é a terceira maior potência industrial do cânhamo no mundo, só fica atrás da China e do Canadá. Além do produto in natura, a indústria paraguaia lançou mais de 200 produtos terminados que o país já comercializa em farmácias, shoppings centers e supermercados de nações como Holanda, Reino Unido, Costa Rica, Caribe, México, Estados Unidos, Canadá, Austrália e boa parte do leste europeu. Esse crescimento exponencial evidencia não apenas as potencialidades do cânhamo e a demanda mundial, assim como a urgência pela reparação social depois de quase 100 anos de criminalização da planta.
Em entrevista ao Sechat, Marcelo Demp explicou que o cânhamo não psicoativo (sem tetrahidrocanabinol - THC - que produz efeitos psicotrópicos) está sendo produzido em 12 dos 17 estados do Paraguai com um objetivo claro: acabar com a miséria no país. “Estamos trabalhando com famílias de extrema pobreza e três comunidades indígenas com a finalidade de criar um grande impacto social e econômico a pequeno, médio e longo prazo. Fizemos um convênio com a Fundação do Paraguai para medir e monitorar a pobreza no Paraguai e chegar até essas famílias para levar dignidade a elas”, fala Demp.
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De acordo com a CCIP, atualmente 1.500 famílias já saíram da ilegalidade e agora cultivam o cânhamo para fins industriais com o apoio e regulamentação do governo. “Quem tem licença vende a semente para o produtor e já assina um contrato para a compra de toda a produção por um valor fechado”. O projeto ainda prevê escolas agrícolas com capacitação em ciências agrônomas. “Queremos formar engenheiros agrônomos para trabalhar com a cannabis. A escola agrícola já atende a mais de mil alunos atualmente. O produtor que trabalhava na ilegalidade era explorado. O pai era obrigado a abandonar a família por seis meses para produzir a maconha na ilegalidade, e ainda assim continuava na extrema pobreza. Agora, a família pode cultivar no seu próprio terreno, na porta de casa, com a fiscalização e todos os protocolos. É o ingresso econômico do pequeno produtor, com ajuda do governo, no mercado legal da cannabis”, explica o presidente da CCIP.
Além da reparação social, o modelo do Paraguai também é inovador por conseguir aproveitar mercadologicamente 100% da cadeia produtiva da cannabis. Das sementes, se produz novas plantas e clones, azeites, suplementos alimentares e cosméticos. Do caule e das folhas, se extrai a fibra usada na tecelagem, na produção de madeira, na indústria e na construção civil. Das flores, se retira os insumos para a produção de óleos, pomadas, jujubas, cápsulas e supositórios, por exemplo. Há seis anos, em parceria com o Canadá, o Paraguai investe no desenvolvimento de plástico biodegradável com a fibra do cânhamo. "É uma revolução industrial, não psicoativa. Além do plástico, trabalhamos com um superalimento certificado que é a noz da cannabis. Rico em ômegas 3, 6 e 9. A planta é completa e ainda contribui com a captura de carbono. Isso é algo que o mundo tem que entender e replicar. Com essa etapa fechamos o ciclo social."
O Paraguai - país um pouco maior do que o estado do Mato Grosso Sul e com mais de 7 milhões e 200 mil habitantes (dados de 2019) - é a primeira nação no mundo que caminha para capturar mais carbono do que emitir ao planeta. Isso é possível graças à capacidade que a cannabis tem de absorver mais CO2 do que devolver para a atmosfera. São mais de 3 mil hectares de cultura dessa planta no país fronteiriço. “Estamos criando a Câmara da Cannabis na Costa Rica, para implantar o mesmo sistema do Paraguai lá. E quem sabe podemos ajudar para que o Brasil também possa avançar nesse sentido”, projeta Demp.
Nosso vizinho começou a investir no setor do cânhamo industrial em 2019 com o objetivo de sanar a fome, assim como combater o tráfico de drogas no país. “O Paraguai ainda é o maior produtor de maconha ilegal do mundo. A estimativa é de que mais de 20 mil famílias continuem produzindo, de forma clandestina, a maconha ilegal. Nosso objetivo, e temos apoio internacional, é erradicar a maconha ilegal e transformar esse produtor num cultivador capacitado para trabalhar com a indústria da cannabis legal”, defende o presidente da CCIP.
Parceria entre Brasil e Paraguai
Atenta aos avanços que estão em curso na maior parte da América Latina quando o assunto é cannabis, a aceleradora de startups The Green Hub, que liderou a comitiva dos países latino-americanos ao fórum da ONU, já tem parceria comercial firmada com a CCIP. “Nós queremos trazer o exemplo do Paraguai para o Brasil. Hoje, o modelo de inciativa público-privada do país é exemplo para o mundo. De todos os países da América Latina, o Paraguai é o mais próximo de nós, até culturalmente. O que nos separa é apenas uma ponte. Essa parceria está só começando e certamente renderá bons frutos, enquanto o Brasil permanecer nesse gap - de não poder plantar - e, portanto, não poder produzir, transformar matéria-prima em insumos para alimentar as indústrias que desenvolvem produtos que vão desde cosméticos a alimentos. Ou seja, tudo que estão desenvolvendo no Paraguai”, afirma Alex Lucena, sócio e head de invocação da The Green Hub.
O Brasil na ONU
O cenário de criminalização do cultivo da cannabis em solo brasileiro, também ganhou visibilidade no evento da ONU. Usando um casado customizado por um projeto da comunidade de Paraisópolis (SP) e com uma bolsa fabricada por detentas a partir da reciclagem de garrafas plásticas de pet, que faz parte do projeto “Teresa Vale a Pena”, a presidente do Instituto Humanitas 360º, Patrícia Villela Marino, falou ao resto do mundo que o modelo de combate às drogas no Brasil é falido e encarcera milhares de jovens pobres e negros num sistema prisional que abriga a terceira maior população carcerária do mundo.
Para Villela, a participação do Brasil num evento na ONU sobre o tema cannabis (não maconha, como enfatizou) e cânhamo - dentro da agenda ESG (economia, social e governamental) para cumprir os objetivos de desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas é algo histórico. “É o reconhecimento da nossa capacidade criativa e empreendedora. Somos cidadãos na ONU lutando pelo direito à justiça social de outros cidadãos e pela oportunidade econômica de geração de trabalho e renda justa e sustentável. Nosso país precisa de uma política de Estado e não de políticas para atender a defesa de privilégios de setores produtivos e de áreas do governo. Perdemos vidas, derretemos esperança, exterminamos sonhos, ignoramos produtividade e ganhos econômicos quando não debatemos a cannabis e o cânhamo”, defende Villela.