As associações e o acesso à cannabis medicinal no Brasil

A transformação do cenário do acesso ao tratamento com cannabis foi promovido por pessoas que compreenderam a luta dos pacientes

Publicada em 17/10/2024

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Uso medicinal da Cannabis | Imagem: Vecteezy

As associações de pacientes de cannabis fazem parte da história do acesso à cannabis medicinal no Brasil. Em um cenário em que o Estado ainda é insuficiente para atender à demanda crescente, as associações surgiram em um período marcado pela ausência de leis e regulamentações adequadas, além da falta de respaldo político diante do preconceito em relação à planta e desconhecimento do seu potencial terapêutico. Movimentos liderados por mães, motivados pela busca de tratamentos eficazes para seus filhos, foram determinantes para o desenvolvimento do acesso à cannabis medicinal no país através das associações. 

Também é válido ressaltar que essas entidades surgiram em resposta à dificuldade de acesso a estes medicamentos, que até então eram praticamente inexistentes no país, com a missão de garantir que pacientes de diversas condições médicas possam ingressar em terapias com canabinoides.

A origem das associações de cannabis no Brasil

 

O movimento associativo começou a se fortalecer após a regulamentação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), com a RDC 17/2015, que permitiu a importação de óleos de cannabis. No entanto, o alto custo desses produtos importados na época, criou uma barreira para muitos pacientes. Em reação, associações como Associação Brasileira de Apoio Abrace Esperança (Abrace) e Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis (Apepi) emergiram para preencher essa lacuna, lutando pelo direito ao cultivo e produção de óleo de cannabis no país. Essas organizações têm se expandido significativamente, beneficiando milhares de pacientes que não teriam condições financeiras de importar os medicamentos.

 

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Sede da Abrace Esperança em João Pessoa na Paraíba | Imagem: Arquivo

 

O impacto social e jurídico das associações

 

As associações têm sido essenciais na ampliação do debate sobre o uso medicinal dos derivados da cannabis, levando a vitórias jurídicas importantes, como o direito ao cultivo da planta para fins medicinais. A Abrace Esperança, sediada na Paraíba, foi a primeira a obter autorização judicial para o cultivo associativo e distribuição destes compostos. Cassiano Gomes, presidente da entidade, destaca a importância dessas conquistas:

“As associações são protagonistas na luta pelo acesso democrático à cannabis medicinal, sempre buscando regulamentações mais inclusivas.” Gomes condena, no entanto, que o caminho que as associações pavimentaram para o acesso à cannabis medicinal, tem sido tomado pelas grandes corporações farmacêuticas.

"Essas empresas, muitas vezes interessadas em lucrar com a venda de medicamentos caros e de qualidade duvidosa, são as únicas que têm condições de participar das licitações públicas criadas para fornecer os produtos aos Estados. Embora as associações tenham sido as pioneiras na construção desse movimento, elas são excluídas das leis que ajudaram a aprovar, porque não têm o capital necessário ou a estrutura exigida para participar dos processos licitatórios. Isso cria um paradoxo onde mercado é dominado pela Big Pharma."

Já a Apepi foi fundada em 2014 por Margarete Brito e Marcos Langenbach após a busca por tratamento com cannabis para sua filha, Sofia. A partir dessa experiência, o casal expandiu a iniciativa para ajudar outras famílias, promovendo o uso medicinal da cannabis e oferecendo produtos, como óleos de CBD, CBG e THC, com eficácia comprovada. A associação também organiza cursos e eventos sobre cannabis, além de divulgar materiais científicos. Desde sua criação, a instituição tem enfrentado desafios legais, incluindo a desobediência civil, para garantir o acesso ao tratamento com cannabis no Brasil, explica Margarete:

"Ao longo dos anos, a Apepi conquistou importantes avanços jurídicos. Em 2016, obtivemos o primeiro Habeas Corpus pessoal que permitiu o cultivo de cannabis para fins medicinais e, em 2020, uma liminar para cultivo e pesquisa. Em 2022, uma nova sentença reafirmou o direito de fornecer óleos de cannabis aos associados. Apesar dessas vitórias, a regulamentação completa do cultivo e produção de cannabis no Brasil ainda é uma meta pendente, o que impede que muitos pacientes tenham acesso ao tratamento".

Além de sua atuação política, a Apepi se destaca no avanço científico. A Fazenda Sofia Langenbach, uma das maiores produtoras de cannabis medicinal do Brasil, realiza parcerias com instituições de pesquisa e desenvolve novos tratamentos, incluindo óleos ricos em CBG, um canabinoide com diversas aplicações terapêuticas. A associação também tem sido tema de documentários e reportagens que ajudam a ampliar a conscientização sobre os benefícios da cannabis medicinal no país.

 

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Fundada em 2020, a fazenda Sofia Langenbach conta com uma área de 37 hectares, sendo responsáveis por todo o processo, desde o cultivo até a extração e envase dos óleos.

 

No sul do país, a Santa Cannabis também obteve o direito de cultivar a planta e fornecer óleo a preços reduzidos. Pedro Sabaciauskis, presidente da associação, afirma que “as associações surgiram como resposta à falta de acesso e à ineficácia do Estado em atender às necessidades de saúde da população.” Essas entidades também se envolvem em pesquisas e educação, colaborando com instituições de ensino e promovendo estudos sobre os benefícios terapêuticos dos canabinoides.

"A grande surpresa no trabalho das associações foi que empiricamente, sem dinheiro, sem estrutura e sem apoio das instituições federativas, fizeram bravamente e sobre o risco de serem presas, aquilo que era papel dos governos fazerem e, incrivelmente, trataram e tratam milhares de pessoas, recebendo o reconhecimento da sociedade civil, dos médicos, das universidades, da imprensa, dos institutos de pesquisa e principalmente do poder judiciário", afirma Sabaciauskis.

O ativista lembra ainda que foram as associações que iniciaram o debate sobre o uso medicinal da planta, levando informações verdadeiras e factuais pra as audiências publicas e a toda sociedade civil.

"São estas instituições sem fins lucrativos que estão  provando, na pratica e com auxílio das faculdades, que o tratamento é pra muito mais doenças que só aquelas reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicinal (CFM) e, é por elas que se da o acesso barato e muitas vezes gratuito dos medicamentos", destacou.

Desafios e crescimento das associações

 

Apesar das vitórias, as associações enfrentam grandes desafios. A falta de uma regulamentação clara para o cultivo e a resistência de setores conservadores são obstáculos constantes. Além disso, muitas dessas entidades enfrentam dificuldades financeiras para manter suas operações, dependendo de doações e contribuições de associados. Mesmo assim, o número de associações no Brasil continua a crescer.

Segundo a Federação das Associações de Cannabis Terapêutica (FACT), atualmente existem mais de 150 entidades espalhadas pelo país, atendendo a cerca de 90 mil pacientes. Associações como Cultive, Accura, AbraRio, Ama+me, Curando Ivo, Maria Flor e Flor da Vida desempenham papéis igualmente importantes, expandindo o acesso a tratamentos com cannabis e promovendo a conscientização sobre os benefícios terapêuticos da planta.

Histórias que inspiram: o caso de Catarina Guerra

 

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Catarina Leal leva sua experiência com o uso medicinal da cannabis até outros pacientes que poderiam se beneficiar dessa alternativa de tratamento | Foto: Arquivo

Entre as muitas histórias que ilustram o impacto dessas associações está a de Catarina Guerra, diagnosticada com câncer de mama em 2019 e, posteriormente, com metástase para os ossos. Após passar por cirurgias e sessões intensas de quimioterapia, Catarina buscou na cannabis uma forma de aliviar os efeitos colaterais do tratamento.

Hoje, com o apoio da Abrace, ela utiliza óleos e outros derivados da cannabis para controlar a dor e melhorar sua qualidade de vida. “A vaporização da planta tem sido fundamental para controlar minhas dores”, afirma Catarina, que continua sua luta contra a doença com o auxílio desse tratamento.

O futuro das associações e a judicialização do acesso

 

A judicialização do acesso à cannabis medicinal no Brasil ainda é um tema central para muitas dessas associações. Além de fornecer tratamento, essas entidades lutam constantemente por regulamentações mais claras e inclusivas. O impacto social dessas organizações é inegável, não apenas na saúde, mas também na economia, com a geração de empregos diretos e indiretos.

"A cada dia que passa vemos cada vez mais pessoas judicializando processos contra o Estado para garantir o fornecimento do óleo de cannabis via SUS, o que é importante para pressionar a justiça a fazer algo em relação ao cenário, mas que a longo prazo, só onera a folha pública", reforça o presidente da Santa Cannabis, Pedro Sabaciauskis.

 

 

 

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A Santa Cannabis atende cerca de 3000 pacientes atualmente | Foto: Arquivo

 

Ele ressalta que, falando-se em valores estimados, as importações de produtos à base de cannabis podem facilmente ultrapassar os R$ 3 bilhões por ano, mas que não chegaria a R$ 800 milhões se a decisão optasse pelo remédio produzido em solo nacional.

Para Pedro Pierro, neurocirurgião e pioneiro na prescrição de medicamentos de cannabis para fins medicinais, as associações têm um papel decisivo não só nas questões judiciais, mas também na educação e acolhimento dos pacientes e famílias:

“A missão delas vai além de fornecer somente o óleo de cannabis, buscando também orientar e empoderar a sociedade sobre seus direitos. Com o crescimento contínuo e a adesão de mais pacientes, o futuro das associações de cannabis no Brasil parece promissor, mas ainda depende de uma maior articulação política e judicial para garantir o acesso ao tratamento de forma equitativa e sustentável."