Os caminhos dos produtos à base da planta até o paciente: uma jornada de luta, conquistas e crescimento
Das primeiras ações judiciais ao desenvolvimento do mercado. Conheça os protagonistas dessa história
Publicada em 03/10/2024
Óleo de CBD | Imagem: Vecteezy
Nos últimos 10 anos, o Brasil vivenciou uma transformação significativa no que se refere ao uso medicinal da cannabis. O país, que anteriormente via a planta como um tabu, começou a construir uma estrutura regulatória que abriu portas para pacientes, médicos, empresas e associações interessados em explorar seu potencial terapêutico. Essa trajetória foi marcada por histórias de mães guerreiras, normativas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o desenvolvimento de um mercado que, em 2024, já atinge números expressivos.
Para que você possa entender melhor os caminhos da cannabis, preparamos uma série especial de reportagens que vai explorar os diferentes aspectos dessa planta e seu uso, tanto medicinal quanto industrial. Na reportagem de abertura, faremos uma introdução geral sobre a história da cannabis, desde seu uso milenar até o cenário atual, além de abordar as formas de acesso disponíveis hoje no Brasil e no mundo. Nosso objetivo é oferecer uma visão completa e didática para que você acompanhe, ao longo dessa série, os avanços, desafios e oportunidades que a cannabis traz para a sociedade em termos de tratamento médico e oportunidades.
As mães pioneiras na luta pelo acesso
A trajetória da cannabis para fins medicinais por aqui, está fortemente vinculada à luta de mães de pacientes com doenças graves, como epilepsia refratária (quando nenhum outro tratamento foi eficaz), que se organizaram para garantir acesso a produtos à base de cannabis para seus filhos. O caso de Katiele Fischer, mãe de Anny, diagnosticada com Síndrome de Dravet, foi um dos mais emblemáticos. Em 2014, ela enfrentou o sistema legal brasileiro para importar canabidiol (CBD), um dos compostos da cannabis, que se mostrou eficaz no controle das convulsões de sua filha.
Outro nome importante é Margarete Brito, fundadora da Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (APEPi), que também lutou para conseguir o tratamento adequado para sua filha Sofia, portadora da mesma síndrome. Da mesma forma, Daiane Zappe, mãe de Benício, encontrou na cannabis uma forma de garantir qualidade de vida ao filho, após tratamentos tradicionais falharem repetidamente. Essas mulheres ajudaram a abrir caminho para que a sociedade e o governo brasileiro começassem a reconhecer o valor medicinal dos derivados da planta.
Evolução regulatória e vias de acesso
A regulamentação do uso medicinal da cannabis no Brasil passou por importantes marcos, envolvendo diversas resoluções, como a Portaria 344 do Ministério da Saúde e a RDC 17, que desempenharam papéis fundamentais na evolução do setor.
A Portaria 344/1998 é uma das normativas mais antigas que regulam substâncias controladas no Brasil, incluindo a cannabis. Inicialmente, a planta e seus derivados eram classificados como substâncias proibidas para qualquer uso, o que dificultava o avanço de pesquisas e tratamentos com base na planta. No entanto, a crescente pressão de grupos de pacientes e avanços internacionais levaram a mudanças graduais.
Já a RDC 17/2015, publicada pela Anvisa, representou um primeiro passo rumo à flexibilização do uso medicinal da cannabis, ao permitir a importação de produtos à base de canabidiol (CBD) para tratamento de condições específicas. Essa resolução marcou o início de uma abertura regulatória, embora ainda bastante restrita.
Posteriormente, a RDC 327/2019 avançou no processo, permitindo a comercialização de produtos à base de cannabis em farmácias e ampliando o acesso para pacientes brasileiros. A norma abrange desde produtos importados até formulações nacionais, facilitando o acesso de pacientes a medicamentos à base de cannabis com prescrição médica.
Por fim, a RDC 660/2022 se destacou ao permitir a importação de uma variedade maior de produtos à base de cannabis, como óleos, pomadas, gummies e sprays, atendendo a uma demanda crescente por alternativas terapêuticas mais acessíveis. Essa resolução, juntamente com a RDC 327, contribui para a expansão do mercado de cannabis medicinal no Brasil, que atualmente conta com mais de 400 mil pacientes e 40 mil médicos prescritores segundo levantamento da Kaya Mind, empresa especializada em dados do setor canábico.
Formas de acesso à cannabis medicinal
Atualmente, os pacientes brasileiros têm diferentes formas de acesso à cannabis medicinal, sendo elas:
- Associações de Pacientes: Organizações como a Abrace, APEPi, Santa Cannabis, Ama+me e Cultive desempenham um papel fundamental. Juntas, atendem cerca de 80 mil pacientes, oferecendo produtos a preços mais acessíveis e orientações sobre o tratamento.
- Aquisição em Farmácias: Conforme a RDC 327, produtos à base de cannabis podem ser encontrados em farmácias autorizadas, facilitando o acesso para quem tem prescrição médica.
- Importação Direta: A RDC 660 permite que pacientes importem diretamente produtos não disponíveis no Brasil, ampliando as opções de tratamento.
- Autocultivo com autorização judicial: Algumas famílias têm conseguido na Justiça o direito de cultivar cannabis em casa para uso medicinal, uma alternativa importante para quem não pode arcar com os custos dos produtos comerciais.
Números do setor
O mercado de cannabis medicinal no Brasil está em plena expansão. Com milhares de pacientes utilizando produtos de cannabis em 2024, o setor movimenta cerca de R$ 700 milhões anualmente, com projeções de crescimento contínuo nos próximos anos.
- Número de Pacientes: Estima-se que mais de 600 mil pacientes estejam em tratamento com produtos à base de cannabis.
- Médicos Prescritores: Cerca de 45 mil médicos estão autorizados a prescrever cannabis medicinal, demonstrando a crescente aceitação da classe médica.
- Mercado Financeiro: Segundo a consultoria Kaya Mind, o mercado de cannabis medicinal no Brasil pode movimentar cerca de R$ 1,5 bilhão até 2025, refletindo o potencial econômico do setor.
Doenças tratáveis
A cannabis medicinal tem sido utilizada no tratamento de diversas condições:
Epilepsia Refratária
Dor Crônica
Esclerose Múltipla
Doença de Parkinson
Autismo
Ansiedade e Depressão
Fibromialgia
Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT)
Alzheimer
A lista de doenças tratáveis com cannabis continua a crescer à medida que novas pesquisas comprovam sua eficácia em condições menos conhecidas. O uso de terpenos e outros compostos da planta também tem sido estudado com grande interesse, especialmente para o controle de inflamações e processos tumorais.
Confira a lista de mais de 50 doenças tratáveis com cannabis
Empresas
No mercado de cannabis do Brasil, empresas como Prati-Donaduzzi, Herbarium, GreenCare, Ease Labs, Revivid, Tegra Pharma se destacam ocupando a maior fatia do mercado. O desenvolvimento de novos produtos acontece conforme novos investimentos em pesquisas são feitos. Além disso, uma característica importante do setor é o investimento em educação sobre os benefícios dos compostos da planta para o tratamento de diferentes doenças. O objetivo é fazer com que cada vez mais profissionais da saúde e pacientes conheçam as oportunidades para cuidar da saúde e ter mais qualidade de vida através da terapia canabinoide.
Associações
Por outro lado, as associações, como Abrace, Apepi, Santa Cannabis e Cultive continuam atuando de forma fundamental, especialmente para aqueles que não conseguem arcar com os altos custos dos produtos. As associações, em muitos casos, fornecem tratamentos a preços reduzidos e acessíveis, atendendo uma base crescente de pacientes em todo o país.
Distribuição pelo SUS e políticas públicas
A inclusão da cannabis medicinal no Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido objeto de debates e propostas legislativas:
- Projetos de Lei Estaduais: Ao menos 24 unidades da federação aprovaram ou estão debatendo leis para garantir o fornecimento de produtos à base de cannabis pelo SUS.
- Estados com Leis Aprovadas: Acre, Alagoas, Amapá, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, São Paulo, Sergipe e Tocantins.
- Desafios: A implementação depende da aprovação de legislação específica no Congresso Nacional ou da incorporação pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS).
Apesar dos avanços, apenas alguns estados iniciaram a distribuição efetiva de medicamentos à base de cannabis pelo SUS, como São Paulo e Sergipe, por exemplo. É que ainda existem muitos obstáculos regulatórios e financeiros a serem superados até que o medicamento, de fato, seja entregue para o paciente.
Desafios e perspectivas futuras
A trajetória da cannabis medicinal no Brasil reflete uma jornada de persistência, marcada por histórias de superação, como a das mães pioneiras, e pela evolução das regulamentações que abriram caminho para criação de um mercado em plena expansão. Hoje, com um número expressivo de pacientes e médicos adeptos ao uso terapêutico da planta, o Brasil se posiciona como um dos maiores mercados em potencial de cannabis medicinal no mundo.
Os desafios do setor
Custos Elevados: O preço do canabidiol (CBD) nas farmácias brasileiras varia bastante, dependendo da concentração, da marca e de outros fatores. Atualmente, o valor médio dos produtos gira em torno de R$300 a R$1.500, dependendo da formulação. Além disso, os custos de importação e a burocracia regulatória no Brasil também encarecem o acesso.
Regulamentação Complexa: A falta de uma legislação federal abrangente pode gerar insegurança jurídica e provocar a timidez de investidores mais conservadores.
Necessidade de Pesquisa: Investimentos em pesquisa científica são essenciais para ampliar o conhecimento e a credibilidade dos tratamentos.
Perspectivas promissoras
Expansão do Mercado: O crescimento do número de pacientes e profissionais prescritores indicam um mercado em expansão.
Inovação: Empresas estão investindo em desenvolvimento de novos produtos e formas de administração.
Conscientização: A crescente aceitação social e médica do uso medicinal da cannabis contribui para ampliação do acesso.
Este panorama destaca não só a evolução regulatória, mas também a importância do contínuo diálogo entre sociedade civil, governo e indústria para garantir o desenvolvimento de políticas públicas inclusivas. Com o mercado global de cannabis medicinal em expansão, o Brasil pode se consolidar como um polo estratégico, tanto no atendimento das necessidades de seus pacientes quanto no crescimento econômico e tecnológico do setor.
*Este material faz parte de uma série de reportagens especiais do portal Sechat, que explora a fundo o acesso aos medicamentos à base de cannabis no Brasil, seus desafios e as oportunidades de crescimento para o futuro.*