Brasil precisa pensar como um país de ação, mas agir como um país que pensa

Em artigo, o colunista Marcelo De Vita Grecco destaca que o país apresenta grave contradição, pois regulamentou a comercialização de medicamentos à base de cannabis, reconhecendo seus efeitos terapêuticos, mas não o cultivo, dificultando as pesquisas

Publicada em 10/12/2020

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Coluna de Marcelo De Vita Grecco*

A política finalmente foi ao encontro da ciência na questão da classificação da cannabis em âmbito global. Na última semana, a Comissão de Narcóticos da Organizações das Nações Unidas (ONU) removeu a cannabis e a resina de cannabis da Lista 4 da Convenção sobre Drogas de 1961. Desta forma, a planta sai do grupo reservado às drogas mais perigosas e sob controle estrito. Esse movimento acontece com atraso de quase dois anos em relação à recomendação feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS) que, à época, reconheceu as propriedades medicinais da cannabis. Antes tarde do que nunca.

O resultado da histórica votação é um marco a ser comemorado e a decisão é fundamental para o avanço em direção a dias melhores no médio e longo prazos. Apenas no Brasil, milhões de pessoas poderiam encontrar no uso medicinal da cannabis melhor qualidade de vida. Ainda assim, a nota negativa da votação é justamente a postura do governo brasileiro, que votou contra a nova classificação

Essa nova classificação não tem efeito imediato no cenário global, pois cada país continua tendo sua própria jurisdição na classificação das substâncias. Porém, o resultado da histórica votação é um marco a ser comemorado e a decisão é fundamental para o avanço em direção a dias melhores no médio e longo prazos. Essa nova classificação deve criar um ambiente mais favorável à pesquisa com cannabis, lembrando que já há um conjunto de evidências significativas sobre o resultado de seus princípios ativos no tratamento de doenças como Mal de Parkinson, esclerose, epilepsia, dores crônicas e câncer. Apenas no Brasil, milhões de pessoas poderiam encontrar no uso medicinal da cannabis melhor qualidade de vida. Ainda assim, a nota negativa da votação é justamente a postura do governo brasileiro, que votou contra a nova classificação.

Em mais de uma oportunidade, o presidente Jair Bolsonaro citou o jargão de que “pior do que uma decisão mal tomada é uma indecisão”. Segundo ele, há possibilidade de erro, mas com a busca de fazer o melhor pelo Brasil.

É muito bom o presidente sinalizar que temos um governo de ação. Entretanto, ao agir, o governo precisa mostrar que pensa. Isso é indispensável e as duas frentes precisam coexistir de forma conectada. Sem isso, as decisões governamentais podem nos fazer andar para trás. Nesse sentido, é preciso levar em conta que as referências que baseavam a classificação anterior da cannabis na ONU eram relatórios da década de 1950, algo que não era minimamente justo ou sequer razoável.

Em mais de uma oportunidade, o presidente Jair Bolsonaro citou o jargão de que “pior do que uma decisão mal tomada é uma indecisão”. Segundo ele, há possibilidade de erro, mas com a busca de fazer o melhor pelo Brasil.É muito bom o presidente sinalizar que temos um governo de ação

Olhando para frente, precisamos considerar que a reclassificação da cannabis pela ONU terá impacto positivo na indústria legal da cannabis, especialmente a medicinal, em âmbito global. Atualmente, mais de 50 países possuem regulamentação para o uso medicinal da planta. Esse número deve crescer, pois muitas nações se embasam em convenções globais para definir suas políticas.

O fato é que houve uma explosão no ecossistema de mercado ligado ao uso medicinal da cannabis nos últimos anos e a decisão da ONU é indicativo de um novo boom. Essa perspectiva deve ter certo impacto positivo em mercados mais maduros, como os da América do Norte e Europa, mas o leque mais amplo de oportunidades está em países que até agora não conseguiram fazer aflorar esse mercado. Esse grupo tem muitos países da Ásia e da região do Caribe. O Brasil está nesse rol e apresenta grave contradição, pois regulamentou a comercialização de medicamentos, reconhecendo seus efeitos terapêuticos, mas não o cultivo, dificultando as pesquisas e impedindo o acesso aos produtos para a maioria absoluta da população.

O Brasil está nesse rol e apresenta grave contradição, pois regulamentou a comercialização de medicamentos, reconhecendo seus efeitos terapêuticos, mas não o cultivo, dificultando as pesquisas e impedindo o acesso aos produtos para a maioria absoluta da população

Esse atraso brasileiro cai na conta do poder executivo e também do legislativo, afinal, a tramitação do Projeto de Lei 399/2015, que regulamenta o cultivo da cannabis para uso medicinal e industrial, está travada no parlamento. A decisão do órgão internacional poderia ser levada em conta para acelerar esse processo.

Nos mercados mais desenvolvidos, produtos baseados em derivados da cannabis como o canabidiol (CBD), composto sem qualquer efeito psicoativo, chegaram em grande volume no mercado voltado ao bem-estar. Ainda mais importantes são os milhões de brasileiros que poderiam ser beneficiados com os medicamentos à base de cannabis. Esse direito à saúde prevalece sob qualquer ótica de análise.

Entretanto, não podemos desconsiderar que um posicionamento conservador e ideológico não só ceifa o direito a uma melhor saúde e qualidade de vida, mas também nos deixa à margem de um mercado bilionário, já explorado em vários países. Só nos Estados Unidos, projeções indicam que o uso medicinal da cannabis pode movimentar até US$ 34 bilhões em 2025.

Esse atraso brasileiro cai na conta do poder executivo e também do legislativo, afinal, a tramitação do Projeto de Lei 399/2015, que regulamenta o cultivo da cannabis para uso medicinal e industrial, está travada no parlamento. A decisão do órgão internacional poderia ser levada em conta para acelerar esse processo

O presidente brasileiro afirma que tomar decisão é imprescindível. Porém, tão relevante quanto assumir um posicionamento é baseá-lo em fatos e evidências científicas. Esse é o melhor caminho para evitar erros. A comunidade internacional deu um sinal histórico e claro para o futuro de possibilidades da cannabis. Com a sua nova classificação na ONU, o Brasil, mais do que nunca, precisa pensar como um país de ação, mas agir como um país que pensa.

*Marcelo De Vita Grecco é cofundador, head de Negócios da The Green Hub e colunista do Sechat

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e não correspondem, necessariamente, à posição do Sechat.

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