Clubes de cultivo de cannabis e legislação: Entenda a atual situação na Argentina
Segundo advogado do estúdio 420, hoje o país conta com cerca de 400 clubes de cultivo, que podem ter grande importância na legalização do uso adulto, hoje proibido no país vizinho ao nosso
Publicada em 09/02/2024
“Os clubes são um mecanismo seguro de acesso à cannabis medicinal. Uma alternativa legal, dentro de uma realidade proibicionista”. Assim, o advogado e fundador do estúdio 420, Juan Palomino, descreve as Organizações Não Governamentais (ONG) vinculadas à saúde, através do Ministério da Saúde da Argentina, socialmente conhecidas como “clube”.
Atualmente, no país, mesmo com a cannabis sendo criminalizada, a Lei nº 27.350 garante o fornecimento dos derivados da planta para pacientes com indicação médica. Uma das vias de obtenção possibilitada pela lei é a autorização para cultivo controlado, adquirido por meio do Cadastro do Programa Cannabis (REPROCANN).
O REPROCANN possibilita ao cidadão argentino, três formas de registro: Paciente (pessoa em tratamento que pode auto cultivar ou juntar-se a um produtor de apoio), Responsável (representante legal da pessoa em tratamento, que pode cultivar para seu cliente ou aderir a um produtor solidário) e Produtor solidário (é a pessoa que cultiva para a pessoa em tratamento, profissional de saúde - médico e dentista - e ONGs ligadas à saúde).
Para ter seu cultivo realizado por associações - produtor solidário -, na hora do cadastro, o paciente deve indicar que a cultura será feita por “outro” e depois vincular-se a um produtor apoiador, cadastrado nessa função. O registro não tem custos e é válido por um ano, além disso, a autorização permite o transporte de até 40 gramas de flores secas ou seis unidades conta-gotas de 30ml, segundo informações do site do REPROCANN.
O que é um clube?
Promulgada em 2017, foi apenas cinco anos depois, por meio da resolução 782/2022, que a Lei 27.350 permitiu às ONGs da saúde o fornecimento de maconha para uso terapêutico de pacientes cadastrados no REPROCANN. Na resolução, as organizações foram autorizadas a representar no máximo 150 pessoas, com uma a nove plantas por paciente.
Mesmo com os aparatos legais, na Argentina a situação da cannabis para fins medicinais ainda é “confusa”, o que torna o significado de associações de cultivo um tanto “confuso”:
“Não existe apenas uma definição de ‘clube’, são várias. A realidade é que não param de surgir novas organizações, me atrevo a dizer que hoje temos cerca de 400 no país. Mas ainda não temos uma ‘diretriz’ definida. Na Argentina, apenas, abriu-se uma porta, o que possibilitou o surgimento de um movimento vinculado ao associativismo, uma alternativa ao paradigma do proibicionismo que existe aqui”, comenta Juan.
Atualmente, 75 organizações da sociedade civil compõem a Federação de Clubes de Cannabis da Argentina (FECCA), iniciativa empenhada em fortalecer o modelo de clubes de maconha como meio de acesso legal à planta. Entre estas associações, está a fundada por Juan, Don Marcelino y los cocos, que segundo ele já serviu de modelo para a criação de outros 110 clubes de cultivo.
Os clubes vendem cannabis?
Uma coisa é certa, as associações de cultivo não realizam a comercialização de cannabis. Na Argentina, segundo a Lei nº 23.737, Artigo 5º é crime, mesmo com título gratuito a troca ou distribuição da planta.
Ou seja, os clubes de cannabis, organizações sem fins lucrativos, funcionam por meio do aporte financeiro de sócio. Essa taxa ou contribuição é destinada a gestão e o controle das associações e cultivo de maconha, que posteriormente será distribuída entre os pacientes, membros do clube.
“São vários os custos de trabalho, luz, aluguel, fertilizantes, substratos, água, salário… que são pagos por cada um dos membros. Existem os sócios fundadores, que administram os clubes e os sócios que, unicamente, aportam dinheiro. É assim que sobrevivem às associações. São grupos sem fins lucrativos, mas que geram dinheiro”, relata o advogado.
Mas, os clubes são lucrativos?
No futebol, clubes como Boca Junior e River Plate da Argentina, Peñarol do Uruguai, Barcelona da Espanha e muitos outros são associações sem fins lucrativos. O termo “clube” é apenas usual, cultural. Segundo Juan, as associações de maconha para uso medicinal funcionam da mesma forma.
“Os times de futebol recebem e gastam milhões de dólares por ano, isso é algo normal. Os clubes de cannabis argentinos se manejam da mesma forma, de maneira democrática, por meio de assembleias, comissão diretiva e afins. Seu fim é social”, comenta Juan.
O advogado complementa dizendo que sim, os clubes já são lucrativos: “Nunca falta demanda, cada vez mais se cultiva, de maneira legal na Argentina”. Vale lembrar que, segundo estudo realizado pela Statis, empresa alemã de coleta e visualização de dados, em 2018, o país já era o maior em número de usuários de maconha na América Latina, de forma proporcional a sua população, cerca de 21% entre pessoas de 15 a 64 anos.
Cannabis para estrangeiros
Conforme Juan, o REPROCANN - cadastro necessário para ser sócio de um clube - não autoriza pessoas de nacionalidade diferente da argentina a realizar sua autorização para cultivo controlado. Ou seja, pelo programa cannabis, apenas cidadãos do país podem participar de ONGs de cultivo.
Mas, segundo a Constituição da Nação Argentina, artigo 20, “Os estrangeiros gozam no território da Nação de todos os direitos civis do cidadão; podem exercer a sua indústria, comércio e profissão; imóveis próprios…”. Por este motivo, estrangeiros, como os brasileiros, podem e já participam de associações de cultivo na Argentina.
“Hoje temos clubes que abastecem comunidades brasileiras, russas. Os argentinos precisam estar cadastrados no REPROCANN, já os estrangeiros não”, comenta Juan.
Avanços industriais
Em 2023, a Argentina, mais uma vez, mostrou que a cannabis é um dos pilares de sua economia, ao sancionar o decreto da Lei nº 27.669/2022. A normativa é referente ao desenvolvimento da cannabis medicinal e do cânhamo industrial e, tem como principal destaque a flexibilização do tetrahidrocanabinol (THC), que deixou de ser considerado um estupefaciente - substância psicotrópica - em quantidades inferiores a 1%.
Também, constata como ponto importante a introdução, a cadeia do cânhamo industrial, de alimentos, bebidas, suplementos, cosméticos. Que, por sua vez, serão reguladas pela Agência Reguladora da Indústria do Cânhamo e da Canábis Medicinal (ARICCAME). O órgão ainda fica responsável pela importação, exportação, cultivo, produção industrial, fabricação, comercialização e aquisição, a qualquer título, de sementes da planta cannabis, de cannabis e seus produtos derivados para fins medicinais ou industriais.
Uso adulto
Mas e o uso adulto, como fica? Segundo Juan, este será por conta das associações. O atual cenário dos clubes, onde a cannabis para fins medicinais não é comercializada, faz com que as associações não precisem pagar impostos ao governo local.
“O fenômeno dos clubes na Argentina vai impulsionar a legalização do uso adulto de cannabis no país. Imagina quando tiver mais de mil clubes abastecendo 150 pacientes, sem pagar nada de imposto, isso irá terminar com a conjuntura que temos atualmente”, comenta o advogado.
Além da questão econômica, para Juan existe um mau aproveitamento do potencial dos clubes, que são capazes, até mesmo de brigar com o mercado ilegal do pais - que segundo ele é a imensa maioria, chegando a 98%.
“A indústria atual está mais pensada para o mercado medicinal, mas ela não me parece projetada para isso, hoje, não está levando em conta o verdadeiro público do mercado interno. Se pensarmos que 90% dos usuários Argentinos são de uso adulto e que a indústria é de laboratório, temos apenas duas opções: manter o mercado informal ou se organizar através de clubes”. Relata o advogado.