Guarda-chuva de lã e o despertar de novos canabinoides na medicina natural
Nativa da África do Sul, o ‘guarda-chuva de lã' surpreendeu a ciência ao produzir mais de 40 tipos de canabinoides, abrindo caminho para novas possibilidades terapêuticas além da cannabis
Publicada em 05/05/2025

Guarda-chuva de lã e o despertar de novos canabinoides na medicina natural | Imagem: CanvaPro
Existe um jardim que cresce silencioso ao lado dos nossos caminhos. Um jardim onde as alfaces escondem moléculas curiosas, trufas negras produzem compostos da felicidade e flores ornamentais da África guardam segredos terapêuticos que agora começam a ser desvendados.
Foi entre pétalas e raízes, em um mundo muito além da cannabis, que cientistas descobriram na Helichrysum umbraculigerum, uma planta aromática, chamada carinhosamente de guarda-chuva de lã e com a capacidade de produzir 40 canabinoides distintos, muitos deles inéditos.
E é sobre esse campo fértil de possibilidades que conversamos com a farmacêutica Stefanie Souza, mestre em farmacologia e especialista no uso medicinal da Cannabis.
A cannabis, por séculos, foi nossa principal ponte com os canabinoides. Foi dela que extraímos os compostos mais famosos, como o THC e o CBD, que hoje revolucionam tratamentos contra dor crônica, epilepsia e distúrbios do sono. Mas o que torna esses compostos tão eficazes?

Stefanie, que atua há mais de 10 anos como consultora científica para empresas e também na educação de profissionais da saúde, principalmente médicos e dentistas, falou sobre a utilização de produtos derivados da planta, compostos da cannabis sativa que interagem com um sistema que regula quase tudo no nosso corpo: o sistema endocanabinoide. “É um sistema modulador, que influencia o apetite, o humor, a inflamação, a dor, a imunidade… e é aí que entram os canabinoides, ativando ou inibindo receptores como o CB1 e CB2”, explica a farmacêutica.
Já os fitocanabinoides, que são moléculas vegetais com estrutura química do tipo terpenofenólica, ganharam destaque por sua segurança, eficácia e efeito sinérgico quando combinados entre si, o chamado efeito entourage.
A surpreendente revelação do guarda-chuva de lã
O estudo publicado pela Nature Plants foi como uma luz em um jardim escuro. A Helichrysum umbraculigerum, nativa da África do Sul, mostrou ser uma verdadeira fábrica de canabinoides, mas não contém o THC ou CBD. O elo com a cannabis está no CBG (canabigerol), um composto com propriedades neuroprotetoras e anti-inflamatórias.
“É fascinante pensar que essa planta, mais próxima do alface do que do cânhamo em termos evolutivos, consegue sintetizar compostos tão similares. Mas é importante lembrar: nem todo composto similar tem o mesmo efeito terapêutico. Alguns são apenas canabinoide-like, moléculas diferentes que interagem com o sistema endocanabinoide, mas não são, de fato, canabinoides”, alerta Stéfanie.
O alface, o cacau e o girassol: a dança química da natureza
Além do guarda-chuva de lã, outras plantas começam a entrar no radar da ciência. Algumas produzem compostos que não são idênticos aos canabinoides, mas que se comportam de maneira semelhante no corpo humano. É o caso do cacau, rico em anandamida, uma molécula conhecida como a “substância da felicidade”, que também está presente no cérebro humano.
O girassol, o trema micrantha, a echinacea e até mesmo a alface têm sido estudados por conterem compostos que interagem com o sistema endocanabinoide. “Mas é preciso cuidado, pois a estrutura química importa muito. Pequenas variações podem gerar efeitos diferentes, e os estudos ainda são iniciais”, reforça.
Da farmacopeia ancestral ao laboratório moderno
Antes da ciência, havia o ritual. A Helichrysum já era queimada em cerimônias tradicionais, talvez como um incenso para os deuses e, sem saber, como uma ponte para o sistema endocanabinoide. Agora, a ciência confirma aquilo que os povos antigos intuíam: essas plantas realmente têm poder.
A farmacêutica Stefanie aponta que a cannabis está na frente por um motivo claro: “Temos séculos de uso, segurança terapêutica e milhares de estudos. As outras plantas ainda precisam percorrer esse caminho. Muitas vezes, a concentração dos compostos ativos é muito baixa, o que dificulta seu uso clínico imediato”, analisa.
Transformar essas descobertas em medicamentos acessíveis é uma tarefa difícil. “Produtos naturais não podem ser patenteados, e isso, de alguma forma, afasta investimentos da indústria farmacêutica, o que transfere as pesquisas para as universidades e instituições menores, o que é caro, demorado e limitado pela regulação”, pontua.
Mesmo assim, ela acredita que há um futuro promissor: “Quanto mais entendermos o sistema endocanabinoide, mais vamos descobrir como diferentes plantas podem ajudar em tratamentos seguros, eficazes e acessíveis. Precisamos de investimento, regulamentação inteligente e, sobretudo, informação", explica.
"É fundamental termos mais abertura e embasamento para dialogar sobre políticas públicas que melhorem o acesso, a regulamentação e a pesquisa. Afinal, quem mais sofre com os entraves atuais são os pacientes, que seguem à mercê de legislações restritivas, altos custos e da falta de alternativas no sistema. Sabemos que, a longo prazo, terapias à base de canabinoides poderiam inclusive aliviar a pressão sobre o SUS e reduzir a dependência de tratamentos convencionais mais onerosos”, continua Stefanie.
A cura pode estar mais perto do que imaginamos
A descoberta do guarda-chuva de lã talvez marque o início de uma nova fase. Uma fase onde os medicamentos não vêm apenas de um laboratório, mas de uma horta. Onde o remédio pode estar em um chá, uma raiz, uma flor esquecida no quintal. “Precisamos olhar com mais atenção para as plantas ao nosso redor. Talvez a cura para muitas doenças já esteja brotando e a gente só precisa saber reconhecer”, conclui Stéfanie.