Quando os idosos encontram a cannabis: alívio das dores e da insônia em busca por dias mais leves
Com o avanço da idade e das dores, cresce o número de idosos que recorrem à cannabis em busca de alívio para insônia, ansiedade e doenças crônicas
Publicada em 21/06/2025

O uso da cannabis na terceira idade | Reprodução IA
Os idosos trazem nas mãos a sabedoria das décadas, mas também as dores que o tempo não conseguiu calar. A insônia que madruga o corpo. As articulações que já não dançam. A ansiedade que, mesmo depois de tantos anos, insiste em visitar. E é nessa travessia que muitos idosos, no Brasil e no mundo, têm encontrado na cannabis uma possibilidade de alívio. Mas junto com o uso terapêutico da planta popularmente conhecida como maconha, surgem também perguntas, dúvidas e, principalmente, a necessidade de cuidado.
Nos Estados Unidos, por exemplo, onde o uso medicinal e recreativo da cannabis é legalizado em dezenas de estados, o número de idosos que utilizam a planta cresceu de forma significativa. Em 2023, 7% dos americanos com mais de 65 anos relataram uso de cannabis nos 30 dias anteriores, em 2005, esse número era inferior a 1%.
Veja Também: Saiba por que uso de cannabis por idosos cresce 46% em dois anos
Um alívio para idosos que precisam de cuidado
A história contada pelo geriatra Benjamin Han, da Universidade da Califórnia em San Diego, é emblemática: uma senhora de 76 anos, lutando contra a insônia, experimentou gomas com THC sem entender exatamente sua potência. O resultado: ansiedade intensa, palpitações e uma visita ao pronto-socorro. O desfecho, felizmente, não foi trágico, mas poderia ter sido.
“O envelhecimento torna o cérebro mais sensível às substâncias psicoativas”, alerta Han. A metabolização mais lenta e o uso comum de outros medicamentos entre os idosos tornam essa população mais vulnerável aos efeitos colaterais da cannabis, especialmente as versões com alto teor de THC.
Embora a cannabis ainda seja tabu para muitos, seu uso medicinal entre idosos brasileiros tem crescido de forma silenciosa. O número exato ainda é difícil de mensurar, mas dados da Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal (AMA+ME) e de associações como a Abrace e a Cultive apontam que há cada vez mais pedidos de habeas corpus para cultivo próprio por parte de pessoas acima dos 60 anos. Essa alta somada ao geral da população resulta em crescimento expressivo. Em maio de 2024, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) observou um aumento impressionante de 4.100% no número de pedidos de habeas corpus para o cultivo medicinal de cannabis no Brasil.
A demanda por produtos à base de cannabis no Brasil também se reflete no mercado: segundo a IQVIA, empresa que monitora o setor farmacêutico, as vendas de produtos com canabidiol (CBD) cresceram mais de 100% entre 2022 e 2024, sendo muitos desses pacientes idosos com doenças crônicas, como artrite, Alzheimer e Parkinson.
Entre a dor e a esperança
Não são apenas números. São histórias como a de Dona Clotilde, de 72 anos, moradora do interior paulista, que viu na cannabis a única saída para controlar as dores da artrose severa. “Passei 20 anos acordando no meio da noite de tanta dor. Com o óleo, consegui dormir uma noite inteira pela primeira vez em décadas”, conta.
Ou a de Seu Francisco, de 68, diagnosticado com Parkinson, que utiliza microdoses para controlar os tremores e a rigidez muscular. “Eu sei que não é cura. Mas me dá qualidade de vida”, diz, emocionado.
Os riscos, ainda pouco falados
No entanto, especialistas alertam: o aumento do consumo não veio acompanhado de políticas públicas de informação e cuidado. Um estudo feito no Canadá, onde o uso recreativo é legal desde 2018, mostrou que o número de internações relacionadas à cannabis entre pessoas acima de 65 anos cresceu 26 vezes entre 2008 e 2021.
Na Califórnia, as visitas ao pronto-socorro por motivos ligados à cannabis em idosos passaram de 21 para 395 por 100 mil habitantes entre 2005 e 2019. Em muitos casos, essas internações ocorreram após quedas, confusão mental, taquicardia ou interação com outros medicamentos.
Coração, mente e memória
A cannabis, especialmente com THC, pode afetar o sistema cardiovascular, aumentando os riscos em pessoas com hipertensão, arritmias ou diabetes. Também há indícios de impactos na memória e cognição. Um estudo conduzido em Ontário, no Canadá, mostrou que pessoas com histórico de uso de cannabis e que passaram por atendimento de emergência tinham risco 23% maior de desenvolver demência em até cinco anos.
Com o aumento da legalização, a indústria da cannabis também tem voltado os olhos (e os anúncios) para os consumidores mais velhos. Dispensários oferecem descontos para maiores de 55 anos, eventos educativos e até programas de “empoderamento canábico” em centros de convivência para idosos, como o promovido pela RISE Dispensaries em Nova Jersey.
No entanto, a educação ainda caminha atrás da propaganda. Muitos idosos têm contato com a cannabis pela primeira vez por indicação informal de familiares ou por conta própria, sem a devida orientação médica, o que aumenta o risco de consumo inadequado.
O que dizem os especialistas?
A orientação geral é: comece com doses baixas e busque produtos com predominância de canabidiol (CBD), que não possui efeitos psicoativos. “A cannabis pode ser uma ferramenta, mas como todo medicamento, precisa de acompanhamento e individualização”, afirma a médica geriatra brasileira Dra. Flávia Galvão, que acompanha idosos usuários de cannabis no Rio de Janeiro.
Ela explica que os óleos ricos em CBD têm apresentado resultados positivos para ansiedade leve, dores articulares e insônia, sem os riscos associados ao THC. “Mas ainda faltam estudos robustos, principalmente com idosos, para que possamos oferecer mais segurança”, diz.
Caminhos para um uso mais seguro
O uso de cannabis por idosos não é uma moda, muito pelo contrário, é uma realidade que se expande. E com ela, cresce a responsabilidade de informar, cuidar e ouvir. Para garantir um uso mais seguro, especialistas recomendam:
* Acompanhamento médico contínuo, de preferência com um profissional capacitado em uso medicinal da cannabis;
* Produtos com certificado de análise e origem confiável, evitando versões clandestinas;
* Começar com doses muito baixas, principalmente em caso de THC;
* Avaliar interações medicamentosas, já que muitos idosos usam diversos remédios;
* Observar efeitos no sono, apetite, humor e cognição, mantendo um diário de uso.
O tempo pede respeito
Envelhecer é um ato de resistência e dignidade. E se a cannabis pode fazer parte desse processo, que seja com responsabilidade, escuta e ciência. Porque quando a vida caminha com passos mais lentos, cada escolha importa.
Leia Mais
O impacto da cannabis no tratamento da demência na terceira idade
A transformação da percepção dos idosos em relação à cannabis medicinal