Autocultivo de cannabis é esperança contra "pior dor do mundo"

Carolina Arruda conquista na Justiça direito de plantar cannabis em casa e diz que passou a priorizar o autocultivo para seu tratamento

Publicada em 02/10/2025

"A gente passou a priorizar o plantio": Como o auto cultivo de cannabis se tornou a esperança contra a "pior dor do mundo"

Carolina Arruda obteve um Habeas Corpus preventivo que garante o direito de cultivar Cannabis sativa em sua residência para fins medicinais. Imagem: Arquivo pessoal

Uma decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) representa um marco na vida de Carolina Arruda, 29 anos, e um precedente na luta de pacientes por acesso a tratamentos alternativos.

Moradora de São Lourenço, no sul de Minas, ela obteve um Habeas Corpus preventivo que garante o direito de cultivar Cannabis sativa em sua residência para fins medicinais. A conquista é o mais novo capítulo de uma longa e dolorosa batalha contra a neuralgia do trigêmeo, uma condição rara e devastadora, frequentemente descrita pela medicina como a "pior dor do mundo".

O tratamento com a cannabis não é novidade para Carolina, mas a via de administração e o alto custo dos medicamentos legais se tornaram barreiras. A vaporização da flor da planta mostrou-se a forma mais eficaz para o alívio das crises agudas, uma necessidade urgente que o sistema tradicional não conseguia suprir.

"A Neuralgia do trigêmeo cursa com crises de dor intensa, lancinante, que podem ocorrer diversas vezes ao dia frente a estímulos mínimos como mastigar, escovar os dentes ou mudanças de temperatura", explica a médica Rafaela Bock, que acompanha o caso.

 

Uma trajetória marcada pela dor

 

A história de Carolina com a neuralgia começou cedo, aos 16 anos, em um momento de vulnerabilidade dupla. "Eu estava grávida da minha filha. Por falta de quatro meses de gravidez, mais ou menos, eu comecei a ter as dores", relembra.

A primeira crise foi um choque, um episódio de 30 segundos que para ela "pareceu durar horas". "Era uma crise que eu só conseguia apertar o rosto com a mão e gritar e chorar. Ninguém entendeu nada do que estava acontecendo", conta.

O que começou com episódios esporádicos evoluiu de forma cruel ao longo dos anos, passando a ocorrer diariamente. O diagnóstico, no entanto, demorou quatro longos anos. "Passei em 27 neurologistas e todos falavam que não poderia ser Neuralgia do Trigêmeo porque eu era muito nova e que isso era uma ‘doença de velho’", desabafa.

A chave para o diagnóstico veio da memória familiar. Seu pai e sua avó notaram a semelhança de seu comportamento durante as crises com o de seu bisavô, que também sofria da mesma condição. Foi no mesmo médico que tratou o bisavô, em São Paulo, que Carolina finalmente ouviu o nome de sua doença.

Descobriu, ainda, que seu caso era duplamente raro, além de bilateral, afetando os dois lados do rosto, sua dor era causada por uma artéria tortuosa que comprime a raiz do nervo trigêmeo dentro do cérebro.

 

"Foi o auge para eu entrar numa depressão profunda"

 

Com o diagnóstico, iniciou-se outra busca extenuante, por um tratamento eficaz. Centenas de medicamentos foram testados, sem resposta e com fortes efeitos colaterais, voltando a esperança para os procedimentos cirúrgicos.

Após ouvir mais de 50 "nãos" de médicos, Carolina realizou sua primeira cirurgia em 2020, mas o alívio durou apenas um mês. "Depois a dor voltou e voltou muito pior", lamenta. Outras três cirurgias se seguiram, cada uma deixando um rastro de sequelas. "Já saí da cirurgia com dor, fiquei com sequelas horríveis, que eu não conseguia deglutir, eu passei meses sem conseguir falar, com a paralisia no nervo da laringe, cuspindo num potinho que eu não conseguia engolir nem saliva".

A última, em 2023, resultou em uma paralisia facial no lado direito do rosto. "Foi o auge para eu entrar numa depressão profunda. Porque além de ter caído minha ficha de que nada ia funcionar para mim, de que eu nunca ia ter uma melhora, naquele momento, tive que reaprender a falar, a comer, a conversar, a fazer tudo".

A dor física incessante somada às novas limitações e à perda de esperança a levaram a um ponto de ruptura. No final de 2023, após uma tentativa de suicídio, Carolina foi internada em uma clínica psiquiátrica por dois meses.

 

Uma semente de esperança

 

Ao sair da internação, em janeiro de 2024, Carolina iniciou o tratamento estruturado com cannabis medicinal. Embora já tivesse experimentado o fumo e alguns óleos,  nada se comparava ao alívio quase imediato proporcionado pelo uso vaporizado durante os picos de dor.

"Eu já tinha fumado maconha algumas vezes e eu percebia que quando eu fumava a dor no pico da crise dava uma amenizada, conseguia ter um controle maior. Com a vaporização a situação era ainda melhor", relata.

"A Neuralgia do trigêmeo cursa com crises de dor intensa, lancinante", explica a médica Rafaela Bock. "Nesse contexto, é importante oferecer um alívio rápido, sendo a via inalada a mais indicada graças à velocidade dos efeitos terapêuticos", continua.

 

A conquista do Habeas Corpus

 

Com um processo judicial para custeio pelo plano de saúde parado, pedido judicial feito devido ao alto custo dos medicamentos com cannabis, a solução foi buscar o direito ao autocultivo. "A gente passou a priorizar o plantio", afirma Carolina.

Para surpresa de seu advogado, Murilo Nicolau, a decisão foi rápida. "Esse Habeas Corpus foi impetrado na semana retrasada e foi menos de sete dias para a decisão. Não é comum", destaca. Ele explica que a necessidade do uso vaporizado, que não pode ser legalmente adquirido com facilidade no Brasil, foi um dos pilares da argumentação.

O cultivo não é aleatório. Com a ajuda de seu marido, que é biólogo, e a orientação de especialistas, foi feito um planejamento cuidadoso, desde a escolha da genética da planta, com 22% de THC, até a montagem de uma estufa com controle de luz, temperatura e umidade.

O número de plantas permitido na decisão judicial também segue um critério técnico. "Todo cálculo agronômico ele tem como base a prescrição médica", elucida o engenheiro agrônomo Vinicius Carrasco, que emitiu o laudo para o processo. "Através desse cálculo a gente consegue chegar no número de plantas que é seguro para o tratamento médico contínuo e ininterrupto".

Enquanto aguarda suas plantas florescerem, Carolina ainda utiliza a medicação que conseguiu guardar da última compra. A planta, crescendo sob seus cuidados, é mais do que um futuro remédio. É um símbolo de autonomia, esperança e, para ela, a chance real de ter sua vida transformada.

Para a Dra. Rafaela, os benefícios vão além do controle da dor. "O THC ajuda a reduzir a intensidade e duração das crises, aumentar o espaçamento entre elas e controlar os sintomas associados como náuseas, insônia e perda de apetite. Além disso, ajuda a melhorar a reação psicológica à dor, reduzindo o sofrimento embutido das crises".

Veja o que a médica diz: