A urgência da regulação de vaporizadores de cannabis no Brasil: entre a omissão institucional e o direito à saúde
O Brasil avança na regulamentação da cannabis medicinal, mas ainda carece de normas claras sobre vaporizadores, essenciais para tratamentos eficazes e redução de danos. Entenda os desafios e caminhos possíveis
Publicada em 17/04/2025

Apesar dos avanços na cannabis medicinal, o Brasil ainda não regula os vaporizadores usados por pacientes (Imagem: CanvaPro)
Por Konstantin Gerber e Paulo Thiessen
O avanço regulatório da cannabis no Brasil vem chamando a atenção de todo o mundo. O país tropical de dimensões continentais, em que ao menos 7,7% da população já declarou ter tido contato com a cannabis, conta com uma grande rede de ativistas, usuários, pacientes, médicos e advogados que vêm, através da implementação de estratégias, construindo direta e indiretamente uma nova realidade à nação em suas políticas públicas quanto à planta.
Nesse sentido, para os observadores mais atentos, os recentes avanços na consolidação dos direitos individuais e coletivos dos pacientes — como o reconhecimento do cultivo e uso de cannabis para promoção da saúde e bem-estar —, somados à recente decisão do Supremo Tribunal Federal que descriminaliza o porte e o uso adulto privado no Brasil, apontam para uma questão inevitável.
Quando o país avançará para uma regulação clara, efetiva e acessível dos vaporizadores de cannabis? Afinal, trata-se de uma ferramenta consagrada de tratamento para certas condições clínicas e, ao mesmo tempo, de redução de danos, reconhecida por evidências fáticas, científicas e pelo próprio direito comparado.
A proposta de revisão da RDC 327/2019, atualmente em consulta pública sob o nº 1316/2025, reacende um debate crucial: embora avance ao ampliar as formas de administração dos produtos à base de cannabis para fins medicinais — incluindo vias oral, bucal, sublingual, inalatória e dermatológica —, a nova norma exclui expressamente de sua regulamentação os dispositivos médicos. Esta exclusão desconsidera a realidade dos pacientes que necessitam de vaporizadores para tratamento com flores e concentrados de cannabis, evidenciando uma lacuna regulatória preocupante.
Prevista na norma futura, a via inalatória consiste na administração “através do sistema respiratório nasal ou oral simultaneamente para efeito local ou sistêmico”, podendo-se identificar a farmacocinética dos canabinoides administrados. Contudo, embora expressa tal possibilidade, ainda há claras e urgentes restrições ao uso de vaporizadores que precisam ser superadas.
Primeiramente, é fundamental superar qualquer argumento que relacione a suposta impossibilidade de regulamentação dos vaporizadores no Brasil à atual restrição de importação de flores de cannabis por pessoas físicas para fins medicinais — conforme exposto na Nota Técnica nº 35/2023 da ANVISA, que alega ausência de evidências científicas suficientes.
Tal argumento perde força diante da realidade: a utilização terapêutica de flores de cannabis já vem sendo reconhecida pelo Poder Judiciário, seja por meio de decisões favoráveis a associações de pacientes — como no caso da ACAFLOR —, seja por habeas corpus concedidos a pacientes individuais. Soma-se a isso a recente decisão do Supremo Tribunal Federal que descriminalizou o porte de até 40g e o cultivo de até 6 plantas fêmeas para uso pessoal.
Diante desse cenário, impõe-se uma consequência lógica: é urgente garantir o acesso seguro e regulado a dispositivos que viabilizam a inalação para certas condições clínicas: os vaporizadores.
Nota-se que, recentemente, o Brasil avançou com a inclusão dos padrões de qualidade das flores de cannabis descritos em monografia e sua reinserção na Farmacopeia Brasileira, por meio da RDC nº 940/2024. Trata-se, sem dúvida, de um passo positivo. No entanto, esse marco ainda se refere à padronização de insumos farmacêuticos, e não à definição de padrões para a droga vegetal in natura, especialmente quanto ao seu uso por via inalatória. Essa lacuna normativa continua gerando entraves burocráticos relevantes — entraves que, porém, precisam ser enfrentados e superados com urgência.
Assim sendo, embora a minuta de norma atualmente em consulta pública mantenha a vedação à “(...) comercialização de produtos de Cannabis sob a forma de droga vegetal da espécie Cannabis sativa L. ou suas partes, mesmo após processo de estabilização e secagem, ou na sua forma rasurada, triturada ou pulverizada, ainda que disponibilizada em qualquer forma farmacêutica”, esse atraso regulatório por parte da ANVISA não pode se sobrepor à realidade concreta dos pacientes — sejam vinculados a associações, sejam em ações individuais — e tampouco em um contexto de privacidade dos próprios cidadãos, conforme reconhecido pela recente decisão do Supremo Tribunal Federal.
Nesse momento, é fundamental destacar a distinção entre a vaporização de flores de cannabis, quando realizada com produtos que seguem boas práticas farmacêuticas, e os fumígenos convencionais, como cigarros. A vaporização, por definição, não envolve combustão, o que reduz significativamente os danos respiratórios e a liberação de substâncias tóxicas — sendo, portanto, reconhecida internacionalmente como uma ferramenta terapêutica para casos de dor crônica.
Apesar disso, a ANVISA ainda não reconhece a justificativa médica para o uso da via inalatória, mesmo em dispositivos vaporizadores de qualidade, alegando supostos danos ao sistema respiratório e riscos relacionados a produtos de degradação térmica — apesar de haver registros de respostas técnicas que indicam a possibilidade de importação desses dispositivos via RDC 81/2008, evidenciando uma falta de uniformidade interna no tratamento do tema.
Faz-se aqui uma breve digressão, pois é impossível ignorar a incoerência regulatória: a mesma ANVISA que regula e permite a comercialização de cigarros com tabaco — repletos de agrotóxicos, aditivos químicos comprovadamente cancerígenos e filtros plásticos que se tornam resíduos tóxicos ao meio ambiente (as chamadas bitucas ou guimbas) — se recusa a regular sequer os fumígenos derivados do cânhamo, uma variedade de cannabis com baixíssimo teor de THC. Trata-se de uma hipocrisia evidente, cujas consequências vão além da saúde pública e adentram o campo da justiça social e da coerência institucional. Ainda que este debate mereça aprofundamento próprio, especialmente no âmbito da redução de danos, o ponto aqui permanece: a ANVISA não pode continuar ignorando o uso seguro dos vaporizadores de cannabis, que sequer queimam o material — ao contrário do cigarro de tabaco.
Para avançarmos enquanto país nessa temática, precisamos enfrentar uma questão terminológica que pode dar margem à confusão: a generalização do termo inglês vape para designar qualquer dispositivo eletrônico que se use por vias inalatórias, sendo preciso demarcar a diferença entre o que seria um cigarro eletrônico que causa danos e um dispositivo médico de vaporização de cannabis que existe para reduzir danos.
De fato, a própria ANVISA, em consultas à ouvidoria em dias próximos, 25/09/2024 e 30/09/2024, ao ser questionada qual o caminho ideal para a importação de vaporizadores de cannabis para pacientes no Brasil, na primeira informou que não seria possível, devido à restrição de importação de cigarros eletrônicos, argumentando para tanto, na época, a RDC 46/2009; na segunda, informou que, embora não haja possibilidade de utilização de flores por suas regulações, a importação de tais dispositivos seguiria a regulação médica da RDC 81/2008, demonstrando que haveria sim um caminho, ainda que complexo.
Ora, se a própria ANVISA ainda demonstra confusão conceitual quanto aos tipos de dispositivos e suas respectivas regulamentações — cometendo equívocos que revelam falta de distinção entre vaporizadores de cannabis medicinal e cigarros eletrônicos —, torna-se ainda mais urgente que o tema seja tratado com seriedade e precisão. Afinal, quem está na ponta é o paciente e o cidadão, que necessita desses dispositivos para seu uso, e não pode ter o tratamento confundido com promoção de danos, especialmente por parte da própria autarquia responsável por garantir o acesso seguro e responsável a tecnologias de saúde. Cabe à ANVISA ampliar o acesso e a proteção do paciente e cidadão, e não impor obstáculos regulatórios.
Pois bem, e qual é o cenário de parte da regulação dos vaporizadores de cannabis mundialmente?
No Canadá, por exemplo, dispositivos como a dab pen (voltada à vaporização de concentrados) são devidamente licenciados, sendo que os profissionais de saúde recebem diretrizes específicas sobre o uso da cannabis, incluindo a vaporização como alternativa mais segura à combustão, pois a quantidade de substâncias tóxicas é muito menor, sendo uma das formas mais eficientes de extração do Delta-9 THC e do CBD, sem relato de efeitos adversos, contendo orientação com base em estudos clínicos, a exemplo para o tratamento de dor crônica.
Já Israel é referência global em cannabis medicinal e também pioneiro na regulamentação de vaporizadores. Desde 2018, dispositivos como o VapePod, para extratos, e o Syqe Inhaler, que utiliza microdoses de flores, foram aprovados pelo Ministério da Saúde como dispositivos médicos. Ambos permitem administração controlada e segura, com redução de danos em comparação à via fumada. A política israelense inclui diretrizes clínicas que reconhecem a vaporização como forma eficaz e preferencial de uso medicinal da cannabis.
A União Europeia, por sua vez, conta com a Agência Europeia de Medicamentos, dispondo de regulação de dispositivos médicos, sendo, pois, possível certificar vaporizadores. Na Alemanha, a cannabis medicinal é legal desde 2017. Dispositivos como o Volcano Medic 2 e o Mighty+ Medic, da empresa alemã Storz & Bickel, são certificados como dispositivos médicos para vaporização de cannabis em toda a Europa e parte do mundo, demonstrando a possibilidade de unidade regulatória no tema.
A Austrália legalizou a cannabis medicinal em 2016 e mantém uma lista oficial de dispositivos de vaporização aprovados. Esses dispositivos são regulamentados para garantir que os pacientes tenham acesso a métodos seguros e eficazes de administração da cannabis.
Nos Estados Unidos, embora a cannabis ainda seja considerada ilegal em nível federal, 39 estados e o Distrito de Colúmbia legalizaram seu uso medicinal, cada um com regras próprias para prescrição, dispensação e cultivo. No que se refere aos vaporizadores de cannabis, a regulamentação também ocorre majoritariamente em âmbito estadual, resultando em abordagens distintas para lidar com esses dispositivos.
Em todos os casos internacionais, como no Brasil, o termo vape pode gerar ambiguidade, pois pode se referir tanto a dispositivos de vaporização de cannabis quanto a cigarros eletrônicos, demonstrando haver necessidade de conhecimento específico. Tal dubiedade precisa ser esclarecida e superada para termos clareza em regulação nacional, para que os vaporizadores de cannabis não sejam tratados com proibicionismo através da RDC 855/24, devido à falta de informação adequada.
Pois bem, no Brasil, a priori, se seguirmos a já citada resposta da ANVISA que distingue os vaporizadores dos cigarros eletrônicos, os vaporizadores podem ser objeto de importação desde que cumpridos os trâmites de vigilância sanitária da RDC 81/2008 para produtos médicos. Contudo, o procedimento não é nada proporcional para a realidade de pacientes que queiram importar, tampouco comporta a realidade dos cidadãos que podem hoje cultivar, portar e usar cannabis sem ser criminalizados, o que revela certamente a necessidade de novo regulamento proporcional, de modo a viabilizar o exercício de direito da cidadania de se tratar por meio da vaporização de cannabis (art. 5º, LXXI, CF).
Na mesma cena, em se tratando de pessoas jurídicas que venham a solicitar a importação, seria preciso seguir o disposto no Manual de Importação de Dispositivos Médicos e o Manual de Peticionamento de Licença de Importação por meio de LPCO (Licença, Permissão, Certificado e Outros Documentos), sendo fundamental a juntada da instrução de uso do fabricante.
Além disso, é relevante destacar que a fabricação de vaporizadores de cannabis no Brasil pode ser viabilizada a partir da harmonização regulatória com certificações internacionais. A RDC nº 687/22 permite o aproveitamento do Certificado de Boas Práticas de Fabricação (CBPF) emitido por autoridades sanitárias estrangeiras reconhecidas, o que facilita a instalação local de linhas de produção originalmente estrangeiras.
Vaporizadores já certificados como dispositivos médicos poderiam ter seus processos produtivos adaptados ao Brasil, desde que em conformidade com os critérios da Instrução Normativa nº 292/2024 e da RDC nº 741/2022, que tratam do reconhecimento de boas práticas e procedimentos de inspeção de fabricantes internacionais. Trata-se, portanto, de uma oportunidade concreta para fomentar a produção nacional de tecnologia em saúde voltada à cannabis, com segurança regulatória e respaldo técnico.
De qualquer sorte, fato é que a ausência de uma regulamentação clara sobre vaporizadores de cannabis no Brasil é um entrave direto à efetivação do direito à saúde, à liberdade, à dignidade e à autodeterminação. Além de comprometer o acesso seguro de pacientes e cidadãos a dispositivos reconhecidamente eficazes e menos danosos, gera impactos econômicos expressivos: desestimula investimentos produtivos no país, impede a instalação de empresas internacionais e priva o Estado de receitas e inovação tecnológica para um público que já existe legalmente e não deixará de existir.
A confusão conceitual entre cigarros eletrônicos e vaporizadores médicos, muitas vezes reforçada por posicionamentos contraditórios da própria ANVISA, só agrava esse cenário. É urgente diferenciar tecnicamente os dispositivos e estabelecer regras específicas que garantam acesso responsável e seguro ao brasileiro.
Frente à omissão regulatória, é legítimo e esperado que pacientes, associações e empresas explorem caminhos administrativos e judiciais — como mandados de injunção ou medidas coletivas — para assegurar o direito ao tratamento via vaporização.
Regulamentar é, acima de tudo, uma escolha entre a omissão institucional e o compromisso com a saúde pública. Em um Estado de Direito, é dever da administração pública atuar conforme os princípios da legalidade, impessoalidade e eficiência (art. 37, CF), promovendo a saúde e a dignidade do cidadão (art. 5º e 6º, CF).
O Brasil já deu e está dando passos importantes em direção à liberdade terapêutica — falta agora fazer o mesmo com os dispositivos que a viabilizam.
*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, a linha editorial do Sechat.