Estudo brasileiro propõe nova interpretação do "efeito comitiva" da Cannabis medicinal
Pesquisadores da UFPI desenvolvem modelo pedagógico que compara canabinoides a papéis funcionais no organismo humano
Publicada em 12/11/2025

Imagem: Ilustrativa Canva Pro
Um estudo publicado no Brazilian Journal of Surgery and Clinical Research por pesquisadores da Universidade Federal do Piauí (UFPI) apresenta uma reinterpretação inovadora do chamado "efeito comitiva" (entourage effect) da Cannabis, propondo uma nomenclatura simbólica que facilita a compreensão de como diferentes compostos da planta interagem com o Sistema Endocanabinoide humano.
Os quatro papéis dos canabinoides
A pesquisa, liderada pelos professores Paulo Jordão de Oliveira Cerqueira Fortes e Lair Geraldo Theodoro Ribeiro, analisou 68 publicações científicas e propõe uma estrutura funcional que traduz a dinâmica do Sistema Endocanabinoide em quatro papéis complementares, atribuindo "personalidades" aos principais fitocanabinoides da Cannabis.
O THC (tetraidrocanabinol) é definido como o "Promíscuo", por sua capacidade de ativar múltiplos receptores simultaneamente, mimetizando os endocanabinoides naturais Anandamida e 2-araquidonoilglicerol. O CBD (Canabidiol) assume o papel de "Freio Homeostático", modulando a intensidade e duração dos sinais. O CBG (Canabigerol) atua como "Mediador Primário", responsável pela integração periférica e imunorregulação. Por fim, o CBN (Canabinol) é identificado como o "Pacificador", agente restaurador da homeostase e do repouso fisiológico.
Mais que a soma das partes
O estudo demonstra que o efeito comitiva não se resume à soma dos compostos, mas constitui uma rede sinérgica de cooperação bioquímica que espelha os mecanismos endógenos de autorregulação do corpo humano.
Os pesquisadores argumentam que os endocanabinoides naturais — Anandamida e 2-araquidonoilglicerol — apresentam curta duração de ação devido à rápida degradação enzimática. Em contraposição, os canabinoides da planta, por não sofrerem metabolização enzimática imediata, apresentam maior persistência sistêmica, prolongando a atividade funcional do Sistema Endocanabinoide.
Desmistificando o THC na prática médica
Em entrevista, o professor Paulo Jordão explica que o THC é frequentemente tratado como vilão na prática clínica, mas teoricamente trata-se de um elemento promíscuo, justamente por ativar diversos receptores e participar de múltiplos circuitos bioquímicos. "A proposta simbólica apresentada no estudo facilita ao médico compreender que parte dessa 'má fama' decorre não da substância em si, mas do desconhecimento sobre como acionar o seu freio", afirma.
Segundo o pesquisador, a precisão nas prescrições tende a melhorar quando se compreende o papel funcional de cada canabinoide. "Por exemplo, o CBN, geralmente utilizado em casos de distúrbios do sono, também atua como ansiolítico, demonstrando que cada molécula possui mais de uma função terapêutica", explica Fortes.
A nomenclatura simbólica serve como ferramenta pedagógica para traduzir complexidade bioquímica em raciocínio clínico funcional, tornando o processo de prescrição mais consciente e integrado.
Além das fórmulas fixas
Quanto às dosagens e combinações terapêuticas, o professor destaca que o THC é um fitocanabinoide bifásico — pode exercer efeitos distintos conforme o contexto e a intensidade da estimulação. "Em doses ou condições diferentes, atua ora como agente terapêutico, ora como elemento desestabilizador", esclarece.
O AGROCANN, núcleo de pesquisa da UFPI coordenado por Fortes, tem colaborado com formulações e ensaios conduzidos em programas de pós-graduação em Farmácia, analisando combinações entre THC, CBD, CBG e CBN. Porém, o pesquisador ressalta que essas interações não se resumem a "receitas" ou fórmulas fixas.
"O objetivo não é encontrar uma proporção ideal, mas compreender a lógica sistêmica que rege o comportamento conjunto desses compostos", pontua. Em diversos acompanhamentos de casos — inclusive de epilepsia de difícil controle — observa-se que a interdependência funcional entre os quatro papéis simbólicos favorece o equilíbrio terapêutico, embora em doses e formulações distintas ao longo do dia.
Teoria como primeiro passo
Sobre os desafios regulatórios brasileiros, Fortes é direto: "Não há, neste momento, como esperar uma colaboração efetiva do poder público". O pesquisador observa que o Brasil possui inúmeras leis estaduais e municipais voltadas à inserção da Cannabis no SUS, mas muitas não são cumpridas, revelando uma lacuna entre o discurso e a prática.
"O artigo avança ao apresentar uma visão teórica original, algo que ainda pode ser feito livremente no país, mesmo diante das limitações regulatórias. Produzir teoria é um passo essencial antes de testá-la empiricamente — e a universidade é o espaço legítimo para isso", defende.
O caminho viável, segundo o professor, é fortalecer as iniciativas privadas e acadêmicas, investindo na produção de conhecimento teórico. Os próximos passos do AGROCANN concentram-se na produção de material científico e pedagógico para médicos, considerados os pilares da prescrição e comercialização responsável de medicamentos à base de Cannabis.
"Ensaios clínicos formais não são indispensáveis para validar a teoria — ela já se apoia em fundamentos presentes na literatura científica internacional. Aqui apresentamos uma tradução desses conceitos em linguagem acessível ao público médico brasileiro", explica Fortes.
Cannabis como modelo biomimético
A combinação dos fitocanabinoides reproduz a sequência natural de ativação, modulação e resolução do Sistema Endocanabinoide, evidenciando que a Cannabis funciona como um modelo biomimético de homeostase, no qual a planta e o corpo operam em conjunto para restaurar o equilíbrio.
O núcleo mantém linhas de pesquisa em cultivo e formulação de derivados medicinais, buscando construir uma base científica sólida em língua portuguesa. "O objetivo é também informar legisladores e gestores públicos, pois a criação de políticas eficazes exige conhecimento prévio do endocanabioma — um bioma composto por sensores lipídicos, enzimas e mediadores bioativos presentes nas células", conclui o pesquisador.
O estudo representa uma contribuição significativa para o avanço do conhecimento sobre Cannabis medicinal no Brasil, oferecendo uma base conceitual para o desenvolvimento de futuras pesquisas e materiais didáticos no campo das ciências biomédicas e farmacêuticas, traduzindo o que os autores chamam de "farmacologia da harmonia".



