O Sistema Endocanabinoide e a segunda revolução na medicina

O que revelam os estudos com novos canabinoides na interação com o organismo e promoção da qualidade de vida

Publicada em 24/05/2024

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“Para além de estudar a cannabis, é preciso entender o homem que a utiliza”, foi com essa frase de José Ribeiro do Vale, professor do Dr. Elisaldo Carlini, que o Dr. Wilson Lessa, médico psiquiatra especializado em psiquiatria forense, deu início à sua apresentação no terceiro Congresso Brasileiro de Cannabis Medicinal, organizado pela Sechat em São Paulo.

A utilização da cannabis como medicamento remonta a milhares de anos, mas foi apenas nas últimas décadas que a ciência começou a desvendar os complexos mecanismos biológicos pelos quais a planta exerce seus efeitos.

O sistema endocanabinoide (SEC) é uma das descobertas mais significativas nesse campo, revelando um sistema de sinalização fundamental no corpo humano que regula diversas funções fisiológicas e neurológicas.

Embora o THC e o CBD sejam os canabinoides mais estudados e, portanto, os mais prescritos pelos médicos, a cannabis é composta por mais de 500 substâncias, e novos canabinoides estão na mira de estudos de cientistas e pesquisadores.

 

História da Cannabis na Medicina


O uso medicinal da cannabis data de tempos antigos, com registros que remontam a 2737 a.C. na China. No entanto, foi no século XIX que a cannabis começou a ser estudada mais sistematicamente, especialmente na Europa, onde foi utilizada para tratar condições como dor, espasmos musculares e epilepsia.

Nos anos 60, a descoberta do THC (tetrahidrocanabinol) por Raphael Mechoulam e seus colegas marcou o início da moderna pesquisa sobre a cannabis. Subsequentemente, nos anos 1990, a descoberta dos receptores canabinoides CB1 e CB2 e dos endocanabinoides, como a anandamida e o 2-AG, estabeleceu o SEC como um sistema crucial na manutenção da homeostase.

“Sabemos que o SEC é o que explica os resultados da planta no organismo. Os estudos mais robustos começam a partir da década de 60, quando os compostos químicos da planta são isolados - CBD e THC - e seguem mais intensamente a partir da década de 90, com a descoberta dos receptores CB1, CB2 e dos endocanabinoides anandamida e 2-AG, revelando a complexidade desse sistema”, explica o médico psiquiatra Wilson Lessa.

 

Sistema Endocanabinoide: O Regulador Universal


O sistema endocanabinoide consiste em receptores canabinoides (CB1 e CB2), endocanabinoides (moléculas produzidas pelo corpo) e enzimas que sintetizam e degradam esses endocanabinoides. Os receptores CB1 são encontrados principalmente no cérebro e no sistema nervoso central, enquanto os CB2 estão predominantemente no sistema imunológico e em órgãos periféricos.

Os endocanabinoides atuam como neurotransmissores, regulando uma vasta gama de processos fisiológicos, incluindo dor, humor, apetite, memória e resposta imunológica. A capacidade da cannabis de interagir com esse sistema explica seus amplos efeitos terapêuticos.

 

Farmacologia dos Novos Canabinoides: Inovações e Aplicações


“A fitoterapia sempre foi e sempre será a base do meu trabalho. Não condeno as moléculas isoladas, mas fitoterapia é outra história e a cannabis abriu os olhos de todos para a fitoterapia. Porém, no caso da cannabis, até o processo de isolamento químico e farmacêutico deve ser considerado. A cannabis tem diversas moléculas além dos canabinoides que se ligam aos receptores do corpo humano, e isso faz toda a diferença quando se pensa no resultado do tratamento”, explica a farmacêutica e mestre em psicossomática, Dra. Margareth Azemi.

Além do THC e do CBD (canabidiol), a pesquisa recente tem se concentrado em outros canabinoides menos conhecidos, como CBG (cannabigerol), CBN (cannabinol), CBC (cannabicromeno) e Delta-8-THC. Cada um desses canabinoides possui propriedades únicas e promissoras para aplicações médicas.

“É preciso observar sempre o controle de qualidade do produto, pois isso é o que garante a eficácia. Não é só observar o potencial fitoquímico, mas cuidar da qualidade do produto. Todo produto de cannabis tem um veiculador, e isso faz toda a diferença", complementa Margareth.
 

CBG (Cannabigerol)


O CBG é considerado a “célula-tronco” dos canabinoides, pois é um precursor tanto do THC quanto do CBD. Embora presente em menores concentrações na planta de cannabis, o CBG tem mostrado potencial em várias áreas terapêuticas.

“O rendimento para extração do CBG ainda é baixo na planta, mesmo que seja de um quimiotipo específico de CBG, ou seja, baixa rentabilidade. Por isso, fica a pergunta: como será o acesso desse produto aos pacientes? Qual a qualidade deste produto?” questiona Margareth.

 

Mecanismo de Ação:

 

  • Atua nos receptores CB1 e CB2, mas de forma menos direta do que o THC;
  • Interage com receptores adrenérgicos e serotonérgicos, influenciando a resposta ao estresse e à dor.

     

Aplicações: antioxidante, antibacteriano, antiestêmico, anti-inflamatório, estimulante ósseo, auxiliar digestivo, diminui a pressão arterial, analgésico. 

 

CBN (Cannabinol)

O CBN é um produto de degradação do THC e está presente em maiores quantidades em plantas de cannabis envelhecidas.

Mecanismo de Ação: 

  • Liga-se fracamente aos receptores CB1 e CB2;

     

  • Possui uma afinidade relativamente alta pelos receptores TRPA1 e TRPV2, envolvidos na percepção da dor.

Aplicações: analgésico, anestésico, antioxidante, reduz ansiedade, anticonvulsivo, anti-inflamatório, causa sonolência, alivia espasmos.

 

CBC (Cannabicromeno)

O CBC é um dos canabinoides mais abundantes na cannabis, mas é menos estudado do que o THC e o CBD.

Mecanismo de Ação:

  • Liga-se fracamente aos receptores CB1 e CB2.
  • Interage fortemente com receptores TRPA1, TRPV1 e TRPV3, que estão associados à percepção da dor e inflamação.

Aplicações: antioxidante, antibacteriano, antifungico, anti inflamatório, relaxante muscular, alivia náuseas e a dor. 

Delta-8-THC

Delta-8-THC é um análogo do THC, com uma estrutura molecular ligeiramente diferente, resultando em efeitos psicoativos menos intensos. 

“Pode causar problemas sérios de uso, pois existe a contaminação de delta 8 sintético e os efeitos adversos dos sintéticos são maiores que dos fitocompletos”, explica Dra Margareth

Mecanismo de Ação:

  • Liga-se aos receptores CB1, mas com afinidade menor do que o Delta-9-THC.
  • Promove a liberação de adenilil ciclase, um mediador crucial nos processos de sinalização celular.

Aplicações: Ansiolítico, antiemético, estimulador do apetite