1971: Decisão tomada por presidente dos EUA impacta o Brasil

Gravações de áudio da década de 70 mostram reveladoras falas do ex-presidente dos Estados Unidos; entenda como o cenário iniciado nos EUA interferiu no Brasil de hoje

Publicada em 20/09/2024

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Imagem: Casa Branca

Em 1971, o então presidente dos Estados Unidos, Richard M. Nixon, descreveu o uso de substâncias ilícitas como o "inimigo público número 1". A partir dessa declaração, diversos países instauraram o fenômeno conhecido como guerra às drogas.

Nixon também foi o responsável por implementar o sistema de classificação de drogas do governo federal, decidindo que a cannabis deveria pertencer à Lista 1, categoria reservada para substâncias consideradas altamente viciantes e sem valor medicinal comprovado.

Ao longo de cinco décadas, essa classificação resultou em milhões de prisões, afetando desproporcionalmente a população negra e dificultando a realização de estudos sobre o potencial terapêutico da cannabis.

 

A maconha "não é particularmente perigosa"


Em março de 1973, Nixon fez uma confissão surpreendente durante uma reunião no Salão Oval da Casa Branca. Diante de um pequeno grupo de assessores, ele admitiu que sabia que a maconha "não era particularmente perigosa", conforme publicado pelo The New York Times, que teve acesso a gravações da época capturadas por um sistema de gravação secreto.

Nixon também demonstrou preocupação com as penalidades severas que os americanos enfrentavam por crimes relacionados à maconha. "As penalidades devem ser proporcionais ao crime", afirmou ele durante a conversa, qualificando como "ridícula" uma sentença de 30 anos imposta em um caso recente de que ele havia tomado conhecimento.

Em outra gravação de 1972, Nixon pode ser ouvido dizendo a um assessor sênior que era a favor de uma "modificação das penalidades" enquanto discutiam crimes relacionados às drogas. "Mas eu não falo mais sobre isso", comentou.

Na reunião no ano seguinte, Nixon foi ainda mais explícito. "Eu sei que [a maconha] não é particularmente perigosa, e a maioria dos jovens é a favor de legalizá-la. Mas, por outro lado, é o sinal errado neste momento".

 

Contexto histórico nos EUA


Em 1937, o Congresso aprovou a Lei do Imposto sobre a Maconha, que, na prática, criminalizou o uso recreativo da cannabis e praticamente interrompeu as pesquisas sobre suas aplicações médicas.

Em 1969, a Suprema Corte declarou a lei inconstitucional por violar as proteções contra autoincriminação. No entanto, um ano depois, Nixon novamente ilegalizou o uso de maconha no âmbito federal, ao assinar a Lei de Substâncias Controladas, que estabeleceu um sistema de classificação de drogas.

O governo Nixon colocou a maconha provisoriamente na Lista 1 e nomeou uma comissão para estudar seus riscos à saúde. Nixon escolheu 9 dos 13 membros da comissão. O grupo concluiu que o uso de cannabis "não constituía uma grande ameaça à saúde pública". Além disso, não encontrou evidências convincentes para sustentar a noção amplamente difundida de que a maconha seria uma porta de entrada para drogas mais perigosas ou um fator contribuinte para crimes violentos.

A comissão recomendou a descriminalização da cannabis, sugerindo que o governo controlasse seu uso por meio de "persuasão, e não de processos judiciais". Nixon, no entanto, ignorou as recomendações e manteve a maconha na Lista 1.

 

Efeito borboleta 


Autora do livro "Fumo de Negro: a criminalização da maconha no pós-abolicionismo", Luisa Saad explica que a proibição da cannabis começou no Brasil em 1932, com o Decreto nº 20.930, que criminalizava o consumo e a venda da planta.

"As décadas que antecederam a proibição foram marcadas por um processo de construção dessa criminalização da maconha e de seus usuários. Práticas como o candomblé, a roda de samba e a capoeira, todas com raízes na população negra, escravizada e posteriormente liberta, também foram criminalizadas", comenta Saad.

Após Nixon estabelecer a Guerra às Drogas como padrão internacional, a situação no Brasil piorou e, segundo Luisa, para superar o cenário atual do país, é necessário estabelecer um modelo próprio, que se ajuste à realidade do país e da sua população. Como orientação, a historiadora acredita que o Brasil deve promover a reparação e anistia das pessoas afetadas, além de incluir essa população no mercado.

De acordo com o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2023 o Brasil atingiu um número recorde de pessoas encarceradas, totalizando 852.010 detentos, o que equivale a cerca de 420 presos por 100 mil habitantes. O anuário mostra que o perfil majoritário dos encarcerados é composto por homens (86%), jovens de até 30 anos (72%), de baixa escolaridade (67%) e negros (68%).

"Acredito em uma legalização ampla para todos os usos da planta. Assim, podemos explorar o uso terapêutico, adulto e as possibilidades comerciais, gerando renda para o Estado e para a população", afirma Saad.

Decisões importantes


Na semana passada, a 2ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo reclassificou, de grave para média, a falta atribuída a um apenado que havia sido flagrado com 36,24g de cannabis ao retornar do trabalho.

"Com essa reclassificação, o regime semiaberto foi restituído e, além disso, não há mais interrupção no cálculo das penas, recuperando os dias que haviam sido perdidos", explica a advogada Luisa Matias, que atuou no caso.

O juízo de primeira instância havia considerado a conduta grave, interrompendo o interstício para progressão de regime e determinando a perda dos dias remidos. A defesa recorreu duas vezes, argumentando que as provas eram frágeis e insuficientes para comprovar o delito.

Apesar da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de descriminalizar o usuário de cannabis, a advogada ressalta que a situação na execução penal não melhorou significativamente. "Ainda vivemos uma realidade punitiva, no mínimo. Nos três meses que se seguiram à decisão do STF, pouca coisa mudou", conclui.