Empresa processa União e Anvisa para plantar cannabis no Brasil

Um grande produtor de flores e batatas agora quer plantar as variedades não-psicoativas da maconha para produzir fibras, alimentos e, principalmente, medicamentos

Publicada em 01/10/2019

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A empresa Schoenmaker Humako, que faz parte do Grupo Terra Viva, entra nesta terça-feira, 1º de outubro, com uma ação na Justiça contra a União e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pelo direito de plantar Cannabis não-psicoativa, para fazer remédios, tecidos e alimentos.

Hoje, no Brasil, a Cannabis é um gênero absolutamente ilegal de plantas: é proibido deixar um único pé crescer em território nacional, mesmo que ele não contenha THC, a substância psicoativa que causa o efeito mental da maconha. A única exceção a essa proibição são 37 indivíduos e uma associação que ganharam o direito na Justiça de cultivar para uso próprio, por necessidade médica.

A Cannabis não-psicoativa, também conhecida como cânhamo ou, em inglês, hemp, é aquela que possui no máximo 0,3% de THC, insuficiente para dar qualquer barato. Trata-se de uma planta com grande valor econômico. Tradicionalmente, as fibras de seu caule são usadas para fazer tecidos e papéis, um óleo muito nutritivo e saboroso é extraído de suas sementes e as folhas dão origem a chás.

Mas, atualmente, o grande interesse na Cannabis sem THC é em uma molécula chamada canabidiol, ou CBD, uma dos mais de 100 canabinóides, que são substâncias que, como o THC, conectam-se aos chamados receptores endocanabinóides de nossas células. O CBD não dá barato, mas é um remédio com enorme potencial farmacêutico, no tratamento de uma grande diversidade de doenças, de epilepsias raras e gravíssimas até ansiedade.

“Claramente tem uma demanda não atendida por CBD no Brasil, com uma demora imensa no processo de importação para os pacientes que precisam e um custo muito alto do importado”, diz Fernando Casado, gerente comercial da Terra Viva. A empresa, que completa 60 anos no próximo mês, foi fundada por um casal de holandeses sediados na cidade paulista de Holambra, conhecida como a capital das flores.

Além de fabricar tulipas e outras flores, a empresa é uma grande produtora de batatas, laranjas, milho e soja. “O grupo tem uma empresa na Holanda também. Como o uso medicinal da Cannabis já foi regulamentado lá, estamos acompanhando de perto o mercado de CBD, e atentos à oportunidade”.

Há enorme interesse em CBD pelo mundo, tanto na indústria farmacêutica, atraída pelas dezenas de indicações médicas e pela quase total falta de efeitos colaterais, quanto na chamada indústria de bem estar (chás, bebidas, cosméticos, pomadas, suplementos). O mercado global, que praticamente não existia cinco anos atrás, já ultrapassou o valor de 1 bilhão de dólares e as estimativas apontam que ele tende a crescer mais de 30% ao ano por mais de uma década, passando de 30 bilhões — demanda reprimida.

O Brasil, país de muita insolação, tem grande potencial para o cultivo de Cannabis . Mas o país saiu atrás: Estados Unidos, Canadá, China e quase toda a Europa, principalmente a do leste, já regulamentaram o cultivo e ocuparam grandes áreas com ele. “É possível que o Brasil seja de fato o melhor país do mundo para produção de cânhamo industrial”, escreveu o engenheiro agrônomo Lorenzo Rolim da Silva, em seu parecer que embasa a ação. “Acreditamos que poderia ser uma cultura mais lucrativa para o agronegócio nacional do que as de grãos”, diz Casado.

Sem contar que a Cannabis , que tem um ciclo curto — cresce em poucos meses, morre e deixa uma próxima geração para o ano seguinte. Por isso, pode ser rotacionada com outras culturas, de maneira que ajuda a recuperar o solo e enchê-lo de nutrientes — basta picotar o pé depois de morto e deixá-lo na terra. “Além de termos um novo produto, achamos que a produtividade do que já fazemos aumentaria.”

Os advogados da Terra Viva argumentam que o cânhamo não é proibido no Brasil: o que é proibido é a maconha. Embora trate-se da mesma espécie vegetal, é fácil garantir que apenas variedades sem THC (ou com índices mínimos) sejam plantadas — basta controlar a circulação de sementes, como se faz no mundo todo. A proibição da maconha no Brasil é baseada em convenções internacionais da ONU, que explicitamente abrem exceções para a produção de Cannabis para fins medicinais e industriais.

Arthur Ferrari Arsuffi, um dos advogados, acha difícil prever os próximos passos. “Tem a chance de uma decisão liminar, que pode ser muito rápida — algumas semanas”, diz ele. “Mas pode ser também que o juiz queira ouvir todos os órgãos de regulação e que a União recorra, o que levaria anos”. A Terra Viva está pedindo autorização para importar sementes e iniciar os plantios imediatamente — “queremos ser os primeiros”.

A ação se antecipa ao processo em curso conduzido pela Anvisa para regulamentar o plantio da Cannabis para extração de medicamentos. A agência prometeu para este mês concluir esse processo e criar regras para a produção, apesar da oposição aberta do governo federal. Os advogados argumentam que cabe à Anvisa regular medicamentos feitos de THC, uma substância proscrita, mas não os de cânhamo “O cânhamo é uma planta comum, que não precisa de regulação especial — seu plantio depende só do Ministério da Agricultura”, diz Arsuffi.

Vale lembrar que o CBD não é a única substância com potencial medicinal extraída da cannabis. O THC também tem muitos usos farmacêuticos — é um bom analgésico e, em combinação com o CBD, aumenta sua eficácia na maioria dos casos. Essa ação judicial, portanto, tem o potencial de beneficiar muitos pacientes — mas não todos.


Fonte: Época