Indígenas denunciam ameaça à sabedoria tradicional do uso medicinal da cannabis
Mesmo após lideranças indígenas se reunirem no maior acampamento da história, representantes do executivo e legislativo se recusam a recebe-los para discutir projetos que podem liberar garimpo e mudar as regras de demarcação de terras
Publicada em 14/04/2022
Por Manuela Borges
"Estão acabando com o nosso conhecimento". É assim que o índio Iohê krahô, pertencente à reserva indígena conhecida como Kraolândia - localizada na região de cerrado no norte do Estado de Tocantins - resume o contato do homem “branco” com os povos originários. De acordo com o indígena, as novas gerações, principalmente, têm substituído as consultas aos pajés pelos remédios alopáticos disponíveis nos postos de saúde. “Temos um conhecimento ancestral sobre o uso de ervas e plantas medicinais e isso tem se perdido com as novas gerações”, lamenta.
Ao portal Sechat, Iohê revelou que faz parte da cultura dos Krhaô o uso da cannabis para fins medicinais e relaxantes - o que não deixa de ser uma terapia medicinal, segundo a sabedoria indígena. Reservado ao ser questionado sobre o assunto, Iohê falou que consumir a planta não é crime nas aldeias. “É proibido vender e negociar, mas o consumo medicinal não pode ser criminalizado. A gente já conhece o princípio da mãe natureza. ”, ensina o indígena.
Quando indagado se os Krahô cultivam a erva para o consumo próprio, o índio preferiu falar no dialeto da sua aldeia e não quis dar detalhes sobre como o seu povo faz para conseguir a planta medicinal. O conhecimento dos Krahô acerca das propriedades medicinais das plantas do cerrado é notório e já foi objeto de estudo do professor conhecido como o “papa da cannabis no Brasil”, o doutor Elisaldo Carlini. Em vida, o então diretor do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coordenou um projeto de mapeamento da fitofarmacopéia empregada pelos Krahô.
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Sob a orientação de Carlini, a bióloga Eliana Rodrigues - durante dois anos de pesquisa do doutorado - levantou plantas e receitas prescritas por sete xamãs, sacerdotes ou curandeiros responsáveis por cuidar dos doentes e de promover rituais de cura em três aldeias que fazem parte da Kraolândia. Ao fim do levantamento, a pesquisadora conseguiu identificar, com a ajuda de especialistas do Instituto de Botânica do Estado de São Paulo, um total de 164 espécies nativas da flora brasileira com propriedades medicinais.
“Corremos o risco de perder toda essa sabedoria milenar! O desmatamento já chegou na aldeia. Em 2021, o fogo queimou tudo. Não sobrou nada. A maior ameaça é o agronegócio. As plantações de soja, milho e eucalipto estão tomando conta das matas. Nossa água está pouca, os rios estão mais baixos, isso preocupa demais. Nada é como antes", alerta Iohê.
Esse alerta não é uma voz solitária e ganhou força num grande protesto que mobilizou Brasília nos últimos dez dias. De acordo com a organização da 18ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), mais de 8 mil indígenas participaram da manifestação, depois de dois anos no formato online em respeito à pandemia. A maior assembleia indigenista da história do país reuniu cerca de 200 povos originários, de norte ao sul, para colocar em pauta o seguinte tema: “Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política”.
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A manifestação foi uma tentativa de sensibilizar o Congresso Nacional para que não paute projetos de lei (PL) que possam colocar em risco os direitos dos povos originários que ainda restam no país. Dois são os PLs que mais preocupam: primeiro é o que libera a mineração em território indígena, o PL 191/2020, conhecido como PL do Garimpo. O segundo é o que modifica as regras de demarcação de terras, o PL 490/2007. Os manifestantes também questionam outras propostas que podem agravar o desmatamento e contaminar rios e alimentos de forma irreversível. São eles, o PL 6.299/2002, a chamada Lei dos Agrotóxicos facilita a entrada de defensivos já proibidos em outros países e reduz o controle sobre os venenos que circulam no Brasil. E para completar, o que ficou conhecido como Pacote da Destruição, ainda tem o PL 2.159/2021, que reduz as exigências de licenciamento ambiental, e o PL 510/2021 que, segundo especialistas, favorece a grilagem de terras e ainda garante a anistia aos invasores.
Ao longo de dez dias de mobilização, dezenas de políticos passaram pelo acampamento e demonstraram apoio às demandas indigenistas. Um deles foi o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pré-candidato à presidência do país. Num discurso acalorado, Lula prometeu criar um ministério exclusivo para os povos originários, caso seja eleito. Nesta quinta-feira, o acampamento chega ao fim. De acordo com a organização do evento, a maior mobilização indigenista da história foi bastante significativa. Lideranças indígenas foram recebidas por três ministros da Suprema Corte e pelo presidente do Superior Tribunal Eleitoral, ministro Edson Fachin. Muito embora o judiciário tenha se aberto ao diálogo, o legislativo e o executivo mantiveram as portas fechadas. A organização afirmou que não conseguiu agendar audiência nem com o presidente Jair Bolsonaro e tampouco com os presidentes da Câmara, Arthur Lira e do Senado, Rodrigo Pacheco.
A antropóloga Silvia Villalva, estudiosa dos povos indígenas desde 1984, vê com preocupação essa falta de abertura com os atuais líderes do país. “A Funai, que deveria ser um órgão de proteção e apoio, não atende aos índios e está sucateada. Hoje, tem um coronel - que não entende nada de índios - cuidando da Funai. A Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) não repassa verba. Os próprios brasileiros não sabem que eles (comunidade indígena) existem”, denuncia.
Para a pesquisadora, o chamado homem colonizado tem dificuldade de entender que mesmo sendo índios, essas comunidades podem ter acesso à tecnologia, por exemplo. “A sociedade alega que agora eles estão de roupa. E se usa roupa e usa celular, não é mais índio. Celular é proteção! Eles filmam, chamam a polícia, ONGs e apoiadores. A tecnologia está aqui para ajudar. Hoje, é essencial que as aldeias tenham telefones e celulares para filmar e registrar as invasões e barbaridades que vêm acontecendo. Nem por isso, eles deixam de ser índios”, afirma Villalva.
A antropóloga ainda faz um alerta para os conhecimentos ancestrais que estão se perdendo nessas comunidades ao longo dos séculos. “Para os indígenas, a cura sempre esteva na mãe natureza! Hoje, existe um campo enorme da medicina que estuda as propriedades medicinais das plantas, como a cannabis, por exemplo. Sabemos que os índios utilizam a erva há séculos para tratar inflamações e dores. Imagina o tanto de recurso e tempo que o ‘homem branco’ não poderia ter poupado se tivesse absorvido o conhecimento dos povos originários desde o primeiro contato, ao invés de tentar colonizá-los? Se hoje eles estão aqui, é por pura resistência!”, conclui a estudiosa.