ITA desclassifica candidato por uso legal de cannabis medicinal
Substância ainda é vista com maus olhos em instituições de ensino geridas por militares
Publicada em 01/08/2021
Curadoria e edição de Sechat Conteúdo, com informações de Poder360
Quem já prestou vestibular sabe que, por bem preparado que um candidato esteja, o fator psicológico tem um peso capaz de determinar se o desempenho do estudante na prova será de êxito ou de fracasso. Quando, então, o teste me questão é para o ingresso em uma das instituições mais concorridas do país, como é o caso do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), podemos elevar tudo isso a enésima potência.
Eduardo Zindane, 20 anos, convive com a exigência autoimposta por um excelente resultado escolar desde de 2019, quando decidiu cursar Engenharia Aeroespacial no ITA, uma instituição que é referência nessa área não só no Brasil, mas também no mundo, uma vez que é de lá que sempre saíram os "cérebros" da Embraer. Depois do primeiro ano de cursinho, ele conseguiu passar na 1° fase, mas não na 2°. Então retornou as aulas preparatórias na mesma época que a Covid-19 acometia as primeiras vítimas no Brasil.
Apesar de 80% da população brasileira sofrer de estresse e ansiedade desde que a pandemia começou, segundo pesquisa realizada pela a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ambas as condições ainda são tratadas como males menores por parte dos médicos e da sociedade. O espanto generalizado causado pela desistência de uma atleta de envergadura da ginasta americana Simone Biles de competir nas olimpíadas em Tóquio para preservar sua saúde mental é uma grande prova de que ainda há muito a evoluir nessa área.
No 2° semestre de 2020, Zindani foi para Londres passar uns meses na casa dos pais, em busca de acolhimento na reta final dos esforços que o levaria a conquistar seu sonho de ingressar no ITA. Sua mãe, Claudia Zindani, sugeriu que ele provasse o canabidiol (CBD) utilizado por ela no combate a insônia e que seu médico havia recomendado ser útil também em casos de estresse e ansiedade.
Na volta ao brasil ele alcançou resultados nas duas fases classificatórias do ITA, Deixando para trás dezenas de candidatos com quem disputava uma das 119 vagas disponíveis para não-militares. em janeiro deste ano, mudou-se para o alojamento do instituto, em São José dos Campos, animado para conhecer os colegas e viver a experiência do "trote", uma espécie de rito de passagem nas universidades públicas.
Das 1150 vagas que o ITA dispôs este ano, 31 foram destinadas aos candidatos que quiseram seguir carreira militar, e todos eles, até mesmo aqueles que optaram pelo curso civil, são avaliados pela Junta Regular de Saúde da Aeronáutica em uma 3° fase, descrita no edital do curso como "inspeção de Saúde" determinando que "os alunos do ITA, [...] realizarão o curso de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) durante o primeiro ano fundamental, devendo, portanto, apresentar condições mínimas de saúde requeridas para o desempenho das atividades previstas".
Ao receber o resultado da última fase de testes, aplicados pelo Centro de Preparação de Oficiais da Reserva da Aeronáutica de São José dos Campos (CPORAER-SJ), braço da instituição, um frio percorreu a espinha do estudante; INAPTO, dizia o papel. A detecção de 0,39 ng/mg de CBD no seu exame toxicológico foi suficiente para que o ITA o considerasse incapaz por uso de drogas. Nem mesmo o fato de não ter encontrado nenhum vestígio de THC, ou qualquer outra substância presente na cannabis os fez considerar que talvez se tratasse do uso médico de uma substância lícita. Eduardo ainda ressalta:
Eu não entendi nada. Porque eles estão olhando isso se é sabido que o canabidiol não é considerado droga à vários anos?
A partir daí, iniciou-se uma via crucis para garantir o direito de Eduardo ingressar no ITA, já que mesmo com o resultado excepcional nas duas primeiras fases de teste e tendo sida constatada sua aptidão física pra ocupar a vaga, tanto a instituição de ensino quanto a Aeronáutica contariam o entendimento da Agência Nacional de vigilância Sanitária (Anvisa), que tem a responsabilidade de definir quais substâncias são consideradas lícitas ou não, em 2015, retirou o CBD da lista de substâncias entorpecentes. "Desde a resolução, o CBD não é mais considerado proibido, e quem faz us do medicamento não pode, sob hipótese alguma, ser classificado ou diagnosticado como usuário de drogas". Defendem os advogados do rapaz.
Eduardo rumou para São Paulo ao lado de outros estudantes tidos como “inaptos” para uma nova avaliação médica. No hospital da Força Aérea, foi atendido por um psiquiatra.
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Expliquei tudo, disse que usei o CBD para aliviar o estresse do pré-vestibular e que na verdade acabou me causando mais estresse ainda.
Conta Eduardo, que chegou a mostrar ao médico um relatório da Wada, a agência mundial antidoping, que em 2018 excluiu o canabidiol da lista de substâncias proibidas, mas foi ignorado.
Na volta à São José dos Campos, Eduardo e os outros estudantes foram recebidos com aplausos pelos outros colegas de turma, com os quais, segundo ele, àquela altura, já havia estabelecido um vínculo “quase familiar”. Ainda assim, optou por deixar o alojamento e voltar para casa, em Ribeirão Preto, para esperar o resultado final da avaliação psiquiátrica.
Três dias depois, o resultado divulgado mantinha a decisão anterior e a instituição procedeu pelo seu desligamento. “Minha ficha demorou a cair, não fazia sentido. Na minha cabeça, exame toxicológico é para pegar alguma droga, não CBD, né?”, questiona-se. Segundo Claudia, o filho mantinha uma dedicação aos estudos de 12 horas por dia, sete dias por semana. “Vivemos uma emoção incrível e, depois de algumas semanas, tudo foi destruído por uma palavra horrível como ‘inapto’, pelo simples uso de uma substância liberada”, lamenta ela, que chorou durante semanas ao lado do marido por “tamanha injustiça”.
Mães e pais dos estudantes da turma de Eduardo fizeram uma vaquinha para bancar os advogados na defesa dos jovens considerados “inaptos” por problemas de visão, histórico de cirurgias, peito escavado e outros. Eduardo, o único desclassificado por uso de cannabis medicinal, precisou adentrar o território jurídico no intento de mudar paradigmas desatualizados em uma instituição centenária e militarizada.
À beira do desespero, Claudia buscou todas as alternativas em busca de justiça e, para isso, pediu ajuda a um dos maiores especialistas em antidoping do Brasil, o médico Fernando Solera, coordenador da comissão antidoping da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), para a construção da defesa do filho.
“Por estar prestando vestibular, ainda mais para o ITA, fica muito claro que ele estava passando por um período de ansiedade enorme. Imagina como estava a cabeça desse jovem, que precisava ser aprovado no exame mais difícil da vida dele?”, lembra Solera. “O medicamento que ele tomava era de uma pureza muito grande, tanto que o resultado encontrado na amostra não tinha absolutamente nada de THC. Para mim, ficou muito claro defendê-lo e tentar mostrar um novo caminho para os colegas médicos do ITA”, conclui.
Correndo contra o tempo para não perder os ritos simbólicos de entrada na universidade, protocolou a defesa de seu caso com o apoio de Solera, além de outros médicos e advogados que contribuíram na construção de argumentações pertinentes, que envolveu chamar a atenção para o seu bom desempenho nas provas, seu histórico clínico e toxicológico e a evolução científica, esportiva e social do canabidiol. No entanto, a 1ª Vara Federal de São José dos Campos deu uma resposta negativa ao seu pedido ordinário de tutela de urgência logo de cara. Questionado, o Comando da Aeronáutica, que responde pelo ITA, afirmou que “não se pronuncia sobre processos judiciais em andamento”
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Apenas quando o recurso foi para a segunda instância, no Tribunal Regional Federal da 3ª Região em São Paulo, o juiz responsável pelo caso acolheu e aceitou a argumentação do estudante, baseada na ciência e nas leis brasileiras, de que o CBD não é droga. “Os desembargadores pediram um novo relatório, que excluísse o CBD, porque o CBD não tinha nem que estar ali”, lembra Eduardo. A solicitação não foi prontamente acatada pela Junta Regular de Saúde da Aeronáutica, mesmo com o ano letivo já em curso. A decisão garantiu, por meio de liminar, a matrícula e o ingresso do estudante apenas em março, quase um mês depois dos seus colegas.
Vivenciando um primeiro ano de universidade diferente daquilo que imaginava, Eduardo aguarda pela decisão final, que deve ser proferida ainda este ano. E, para ajudar a controlar a ansiedade da espera, ele tem optado por algo que, com certeza, não o fará correr o risco de ser considerado inapto segundo os olhos da Aeronáutica: meditação, que não por acaso vem intensificando durante os últimos meses.
Texto de Anita Krepp, fundadora do Cannabis Hoje e colunista do Poder360 na indústria da cannabis.