Cannabis medicinal transforma rotina de cães idosos com disfunção cognitiva
Aos 15 anos, Eddie Van Halen dorme tranquilo novamente. Benjamin voltou a brincar e Dalila reencontrou o prazer de comer e a alegria de viver. Histórias reais de cães idosos que estão redescobrindo a calma e a qualidade de vida graças a um projeto inédito com cannabis medicinal
Publicada em 01/05/2025

Com carinho no olhar e respeito à velhice, a médica veterinária Klysse Assumpção dedica-se a oferecer mais conforto e dignidade aos seus pacientes caninos idosos (Foto: Arquivo Pessoal)
Os olhos atentos de Eddie Van Halen, um maltês que completa 15 anos no próximo dia 5 de maio, contam uma história que vai além da idade. Antes do início da terapia com cannabis medicinal, Eddie fazia jus ao seu nome e transformava as noites em sua casa em grandes shows de rock. Era um cão que mal dormia, vivia em estado de alerta e latindo ao menor barulho vindo da rua. Resumo: não deixava seu tutor descansar também.

"Agora, ele dorme tranquilo, a noite toda. Está mais acordado durante o dia, mais presente", conta aliviado o tutor José Luis Monteiro Lopes, de Botucatu (SP), visivelmente emocionado com a melhora do companheiro de quatro patas.
Mas foi no acolhimento de um projeto de pesquisa inovador que a rotina da dupla começou a mudar. Desenvolvido pelo grupo ENVECAN (Envelhecimento Canino), da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da Unesp-Botucatu, sob orientação do professor Dr. Rogério Martins Amorim e auxílio do doutorando Joshua Polanco, o estudo “Efeitos terapêuticos do óleo de cannabis em cães com Síndrome da Disfunção Cognitiva”, trouxe um alento à pacientes caninos com mais idade diagnosticados com a Síndrome da Disfunção Cognitiva (SDC), uma condição neurodegenerativa progressiva, semelhante à doença de Alzheimer em humanos.

O projeto é conduzido pela médica veterinária e mestranda Klysse Assumpção, que tem dedicado seus dias (e noites) a cuidar, observar e acolher os cães que integram o estudo.“É uma doença que causa sofrimento silencioso. A SDC traz alterações no sono, na memória, na interação e até na capacidade de reconhecer ambientes e pessoas. Muitos tutores, infelizmente, acabam optando pela eutanásia, porque os tratamentos convencionais não oferecem respostas”, explica Klysse.
O estudo é pioneiro ao utilizar o cão como modelo translacional para compreender como os fitocanabinoides podem atuar na modulação do sistema endocanabinoide e, quem sabe, abrir portas para terapias em humanos, especialmente no campo das doenças neurodegenerativas.
Benjamin: o reencontro com a serenidade
Outro cão que emocionou a equipe do estudo foi Benjamin, um Sharpei de 12 anos. Há cerca de um ano e meio, Benjamin começou a apresentar sinais de desorientação e um comportamento incomum: chorava inconsolavelmente à noite, deixando seus tutores, Laísa Pinheiro da Silva e o marido também sem dormir por dias.

“A gente já estava ficando as noites em claro. Ele chorava muito, mesmo com a gente ao lado dele. Foi desesperador”, relata Laísa, que também é estudante de Medicina Veterinária na Unesp.
O comportamento de Benjamin se agravou bastante e após uma bateria de exames clínicos que descartaram outras doenças, a suspeita recaiu sobre a disfunção cognitiva. Ao iniciar o tratamento com o óleo de cannabis, os tutores perceberam uma mudança significativa. “Hoje ele voltou a ser independente, dorme, se alimenta, interage, e até voltou a brincar com a outra cachorrinha. A cannabis devolveu a ele a qualidade de vida que ele estava perdendo, e isso é muito importante pra gente”, afirma Laísa.
Dalila: do medo à redescoberta da alegria
Já Dalila, uma Shih-tzu de 14 anos, também tem mostrado uma linda evolução dentro do projeto. Segundo sua tutora, Laís Oliveira Scarabucci, os sinais começaram a surgir por volta dos 10 anos. Primeiro veio o medo intenso de barulhos, principalmente chuva. Depois, o olhar perdido, a confusão dentro de casa, a troca do dia pela noite, e a perda de controle sobre suas necessidades fisiológicas, que passaram a ser feitas na própria caminha.

“Depois que ela começou a tomar o óleo, percebi que voltou a comer com mais vontade, passou a dormir melhor e parou de fazer xixi e cocô na cama. Recentemente, até voltou a brincar. É como se, aos poucos, ela estivesse reencontrando partes de si mesma que a velhice havia levado”, compartilha Laís.
Um olhar clínico e amoroso sobre o envelhecimento animal
Como a veterinária afirmou acima, a síndrome da disfunção cognitiva é uma condição neurodegenerativa silenciosa, progressiva e, muitas vezes, confundida com “mania de velhice”. A motivação para iniciar o projeto veio da vivência prática dela enquanto médica veterinária, mas também de uma experiência pessoal. “Tive um gato idoso com disfunção cognitiva que melhorou muito com o óleo de cannabis. Pude ver de perto o quanto isso trouxe qualidade de vida para ele e para mim”, revela.
Ciência que acolhe e transforma
O projeto selecionou ao todo 20 cães com sinais clínicos da SDC como alteração no ciclo sono-vigília, desorientação, alterações na interação com outros animais e humanos, eliminação de fezes e urina em locais inapropriados, alterações de comportamentos aprendidos e ansiedade.
A veterinária contou que os pesquisadores dividiram os animais em dois grupos: um recebe placebo e o outro, o óleo de cannabis rico em CBD. “A escolha do quimiotipo III, rico em canabidiol foi baseada em evidências científicas que mostram seus efeitos neuroprotetores, anti-inflamatórios e ansiolíticos, principalmente em estudos envolvendo Alzheimer. Mas também estamos atentos à possibilidade de ampliar para outras formulações no futuro”, ressalta.
Financiado pela Fapesp e contemplado por emendas parlamentares dos deputados Caio França e Eduardo Suplicy, o projeto abre caminhos promissores não só para o futuro da medicina veterinária, mas também para a forma como entendemos o envelhecimento animal com mais dignidade, cuidado e possibilidades reais de qualidade de vida.

Embora os resultados finais ainda estejam em análise, os relatos dos tutores e as observações da equipe já apontam um caminho promissor para o uso da cannabis medicinal em doenças neurodegenerativas. “A proposta é que, com resultados positivos, possamos ampliar esse estudo, talvez até desenhar um protocolo que possa ser aplicado em larga escala, incluindo clínicas e programas públicos de saúde animal”, explica Klysse.

Enquanto a ciência avança, os tutores José Luis, Laísa e Laís seguem colhendo os frutos de um cuidado que vai além do remédio: é sobre oferecer dignidade, afeto e acolhimento para quem já passou tantos anos nos oferecendo amor incondicional.
Assista ao vídeo da Dra. Klysse Assumpção explicando sobre: