Afinal, a cannabis é psicodélica?

Médico anestesista explica as diferenças neurocientíficas e terapêuticas entre a maconha e substâncias como LSD, psilocibina e cetamina

Publicada em 05/07/2025

Afinal, a cannabis é psicodélica?

Embora altere a percepção e tenha uso espiritual ancestral, a cannabis não é considerada um psicodélico clássico | CanvaPro

Será que toda planta que expande a consciência pode ser chamada de psicodélica? A resposta, como muitas outras na medicina, não é simples. Há séculos, a cannabis acompanha a humanidade em rituais, curas e descobertas pessoais. Mas, à luz da neurociência contemporânea, ela compartilha os mesmos caminhos que o LSD, a psilocibina ou o DMT? Ou trilha uma estrada distinta, embora paralela, na complexa geografia da consciência?


Para entender essa nuance, conversamos com o médico anestesista Dr. Renato Muniz Giaccio, que atua com substâncias psicodélicas e acompanhou pesquisas sobre seus usos terapêuticos.


A diferença entre o “psicoativo” e o “psicodélico”


 

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Dr. Renato Giaccio afirma que a cannabis não pode ser considerada um psicodélico clássico. | Foto: Divulgação

De imediato, o médico é categórico ao afirmar: "A maconha, ou cannabis, é frequentemente classificada como uma substância psicoativa e psicotrópica, mas não é tradicionalmente considerada uma substância psicodélica clássica”. 


Ou seja, apesar de alterar percepção, humor e cognição, que são características típicas dos psicodélicos, a cannabis se comporta de forma diferente no cérebro. Enquanto os chamados psicodélicos clássicos, como o LSD ou a psilocibina, atuam sobre os receptores 5HT2A do sistema serotoninérgico, os fitocanabinoides da maconha (como o THC e o CBD) se ligam a receptores do sistema endocanabinoide, especialmente os CB1 e CB2.


Essa diferença de atuação impacta diretamente na qualidade e profundidade das experiências proporcionadas por essas substâncias.


A cannabis altera a consciência? Sim. Mas em outra chave.


Segundo Renato, a experiência subjetiva com a cannabis é real, significativa e válida,  mas menos intensa e menos "transformadora" que as vividas com psicodélicos clássicos. "A cannabis pode gerar euforia, relaxamento, aumento da percepção sensorial e distorção do tempo, mas os psicodélicos clássicos geralmente provocam alucinações visuais e uma mudança profunda na percepção de si mesmo e da realidade”, explica.


Tanto a cannabis quanto os psicodélicos, no entanto, devem ser usados com responsabilidade. Ambas as experiências podem ser ansiogênicas, especialmente em contextos inadequados.


Entre templos e terapias: a tradição espiritual da cannabis


Desde os antigos rituais hindus até cerimônias rastafáris, a cannabis tem sido associada ao sagrado. Essa conexão, segundo Dr. Renato, revela o seu potencial de expandir a consciência, mas com uma ressalva: “As práticas de rituais podem facilitar experiências subjetivas que promovem conexão espiritual e introspecção, embora o caráter dessas experiências possa variar em intensidade quando comparado à psicodélicos”. Ou seja, o rito, o ambiente e a intenção desempenham papéis fundamentais na jornada com a cannabis, assim como ocorre com os psicodélicos.


Potencial terapêutico: entre promessas e limites


Sabemos que, na medicina, a cannabis já mostra bons resultados no tratamento de ansiedade, dor crônica e até quadros de depressão leve. Mas quando o assunto é depressão resistente, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) ou ansiedade existencial profunda, as evidências são mais tímidas.


“A cannabis tem mostrado potencial terapêutico em algumas condições psiquiátricas, com estudos indicando benefícios para a ansiedade, dor crônica e, em alguns casos, depressão. No entanto, as evidências do seu papel como um tratamento para condições como depressão resistente ou TEPT ainda é limitada quando comparada aos psicodélicos, que têm demonstrado resultados mais robustos, como é o caso da Cetamina, um psicodélico dissociativo, que já é considerado primeira linha no tratamento da ideação suicida e segunda linha no tratamento da depressão resistente”, avalia o médico.


O que é, então, a cannabis?


Talvez a resposta mais honesta seja: depende do olhar. Para uns, é cura. Para outros, ritual. Para a ciência, é uma planta complexa, que ativa sistemas únicos no corpo humano e pode, sim, induzir estados de consciência alterado. Não é LSD, nem DMT, nem ayahuasca. Mas também não é apenas uma substância recreativa. É cannabis. Com sua história, seus mistérios e sua potência.

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