O cuidado que virou ciência: uma mãe, sua filha e a força da cannabis no tratamento do autismo

A cientista Micheline Donato transformou sua vivência como mãe de uma jovem autista em pesquisa

Publicada em 03/07/2025

O cuidado que virou ciência: uma mãe, sua filha e a força da cannabis

Professora Micheline | Foto: Divulgação

Era para ser apenas mais um projeto de pesquisa. Mas nasceu como um desabafo profundo do coração de uma mãe. Uma resposta amorosa às dores silenciosas de quem caminha no mundo com um cérebro que sente tudo demais e que, tantas vezes, é mal compreendido.

Foi assim que nasceu o Alticam, projeto de pesquisa da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), em Foz do Iguaçu, coordenado pela professora Micheline Donato. A inspiração? Sua filha, hoje com 25 anos, diagnosticada com autismo suporte 1 apenas na vida adulta, após anos de erros diagnósticos, tratamentos ineficazes e sofrimento calado.

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Micheline Donato, professora e pesquisadora do Laboratório de Cannabis Medicinal e Ciência Psicodélica - UNILA/ Foz do Iguaçu-PR | Foto: Divulgação

“Esse projeto surgiu por tudo que vivi com ela. Desde os cinco anos, ela foi tratada com base em diagnósticos equivocados. Só aos 21 anos, um psiquiatra finalmente enxergou o que ninguém via”, conta Micheline, com a serenidade de quem conhece a dor, mas aprendeu a transformá-la.

A pesquisa, desenvolvida no Laboratório de Cannabis Medicinal e Ciência Psicodélica (LCP), investigou os efeitos do óleo full spectrum de cannabis em adultos com transtorno do espectro autista (TEA). Foram 14 participantes, entre eles homens e mulheres, que representaram, cada um à sua maneira, a pluralidade da neurodivergência.

Nos primeiros 30 dias de tratamento com o óleo de 3000 mg, os resultados apareceram como flores após uma longa seca: melhora do sono, da ansiedade, da socialização e da restrição alimentar. “Tivemos uma redução de quase 28% nos sintomas observados. A cannabis floresce esperança onde os tratamentos convencionais já falharam tantas vezes”, afirma a professora.


Mulheres que sentem demais


Micheline se emociona especialmente ao falar das mulheres da pesquisa. “Elas relataram sofrimento ainda mais profundo. O mascaramento, o chamado masking, fez com que passassem a vida tentando se adaptar, invisibilizadas. Com o uso da cannabis, houve melhora na auto e heteroagressividade, no humor, na ruminação dos pensamentos. Elas finalmente conseguiram se enxergar com mais clareza”, pontuou a cientista.

A mãe lembra que, mesmo nos estudos sobre TEA, há um apagamento dos sintomas femininos. E isso torna o diagnóstico tardio ainda mais cruel. “O que parece uma depressão que nunca passa, uma ansiedade sem nome, um surto que ninguém compreende… pode ser autismo.”


Mais do que remédio: um ajuste fino da alma


Com mais de 24 anos dedicados à ciência, Micheline afirma com convicção: a cannabis medicinal é uma ferramenta tecnológica do século 21. Não apenas por suas propriedades químicas, mas por sua capacidade de reequilibrar um sistema que a medicina ocidental negligenciou por décadas, o sistema endocanabinoide. 

“O preconceito e a proibição da planta atrasaram a ciência. Apenas 2% dos médicos no Brasil prescrevem cannabis hoje. Estamos correndo atrás de um prejuízo histórico. Mas eu acredito: estamos no caminho certo”, esperança.

Os efeitos colaterais observados no estudo, como náuseas e perda de apetite, desapareceram após a primeira semana de uso. E os benefícios se estenderam para além dos dados estatísticos: os pacientes relataram mais concentração, menos tristeza, menos irritabilidade, mais confiança para se comunicar. Um respiro, finalmente.


Cannabis e Autismo: Uma ponte entre dois mundos


Micheline tem se tornado uma ponte entre a ciência e a vida real. Seu estudo foi premiado em congressos nacionais e será apresentado agora em julho na International Society of Cannabis Research (ICRS), nos Estados Unidos, um feito inédito para uma brasileira com pesquisa clínica feita no Brasil sobre TEA em adultos.

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A luta pessoal da cientista virou uma pesquisa que atingirá outras mães e famílias | Foto: Arquivo Pessoal

“Sou a primeira brasileira a apresentar esse tipo de estudo nessa sociedade, que reúne os cientistas que mapearam o sistema endocanabinoide. Isso mostra o quanto nossa pesquisa é relevante.” 

E como mulher, mãe e pesquisadora, ela fecha com um recado cheio de gratidão: “A cannabis revolucionou a vida da minha filha. Reduziu o uso de outras medicações, melhorou a qualidade de vida dela, sua autopercepção e sua autorregulação. E é isso que espero poder levar a outras mães, outros filhos, outros adultos que viveram invisíveis por tanto tempo. Estou aqui para ser ponte. Com carinho, com ciência e com amor”.

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